IPH - Instituto de Pesquisas Hospitalares

Publicações Revista IPH Revista IPH Nº 11 A moderna arquitetura de saúde e a cidade

A moderna arquitetura de saúde e a cidade Ana Albano Amora

Preâmbulo

Para falar da moderna arquitetura para a saúde e a cidade torna-se necessário fazermos uma incursão pelos termos deste título para entendermos como se relacionam.  A discussão acerca de uma cidade sã, limpa e desprovida de riscos à saúde coletiva não é um fato novo, esse pensamento está no bojo das concepções modernas sobre a cidade e sobre a arquitetura hospitalar. Essa luta pela salubridade das cidades nos remete, sem medo de anacronismos, à Europa do século XVIII e ao nascedouro da medicina moderna. É nesse momento que encontramos os primórdios da modernização do campo.

Referência para os estudos sobre a questão da saúde, Michel Foucault (1979) considerou que a medicina moderna é uma prática social, a qual tem por detrás uma tecnologia do corpo social e, no âmbito da expansão do capitalismo, entre o século XVIII e o século XIX, socializou o corpo como força de produção e força de trabalho. Nesse período, sob o mercantilismo, as nações europeias se preocupavam com a saúde de suas populações, pois havia a necessidade do controle do fluxo monetário, dos fluxos de mercadorias correlatos e, consequentemente, das atividades produtivas das populações, remetendo-se, assim, a um controle sanitário. Como antecedente dessas medidas, temos já no século XVII, na França e na Inglaterra, as estatísticas de natalidade e mortalidade e a contabilidade da população e, na Alemanha, a instituição de uma prática médica efetivamente voltada para a melhoria da saúde do povo com uma polícia médica exercendo controle.

Contribuindo a esse entendimento, cabe destacar a citação de Richard Sennett (2005) à descoberta do médico britânico William Harvey com sua obra De motu cordis (1628) sobre a circulação do sangue, que veio revolucionar a compreensão do corpo e, consequentemente, favoreceu um novo modelo - de mobilidade - o qual coincide com o advento do capitalismo. Esse modelo influenciou sobremodo a abertura do tecido urbano, permitindo a disseminação de uma perspectiva viária para as cidades, propiciando uma melhor circulação de seus habitantes e também sua melhor aeração.

Assim, contextualizando o século XVIII e retomando Michel Foucault (1979), o autor comenta os fundamentos da formação da medicina social no ocidente moderno destacando: uma medicina de Estado que se desenvolveu na Alemanha no começo do século XVIII; uma medicina social que surge na França em fins do século XVIII e que tem como suporte a urbanização; uma nova forma de medicina social na Inglaterra que tem como preocupação a pobreza.

Apesar de essas três experiências terem tido impacto na formação da nossa medicina social, aqui nos interessa pensar a relação com a cidade e, assim, em um primeiro momento, nos reportaremos à França e à medicina relacionada ao urbano para depois, ao longo do texto, discorrer sobre a temática no Brasil, com o exemplo do Rio de Janeiro. Finalizaremos com algumas considerações acerca do patrimônio cultural da saúde como lugares de memória para a cidade.

A França e a medicina urbana

A preocupação com a saúde e o urbano na França emerge no quadro da consolidação dos estados e do crescimento das cidades e da necessidade de estruturá-las como unidades politicamente homogêneas. Segundo Foucault (op. Cit.), a estrutura territorial das cidades francesas se constituía em um emaranhado de territórios heterogêneos e na não existência de um único poder, mas sim em um conjunto de poderes senhoriais[1]. Como consequência, na segunda metade do século XVIII, se enfrenta essa problemática de unificação do poder urbano por razões econômicas e políticas, em função do chamado perigo urbano e das revoltas cada vez mais frequentes no espaço citadino[2]. Nesse momento, tornou-se necessário um maior controle do corpo social. Para tal, o instituto da quarentena foi o mecanismo revisitado e adaptado para o controle da população e a nascente medicina urbana tornou-se um aperfeiçoamento desse esquema político-médico. Tal mecanismo constituiu-se de um esquadrinhamento do urbano com uma análise minuciosa das cidades e um registro permanente de cunho militar em busca de uma higiene pública, como a análise dos lugares de acúmulo no espaço urbano de tudo que pudesse vir a provocar doenças.

Isso teve efeito sobre as formas de dispor os equipamentos urbanos no espaço e sobre o controle e a organização da circulação do ar e da água, chegando ao que este autor irá chamar de localização em sequência, ou seja, a observação sistemática das consequências de determinadas localizações em relação a outras, como por exemplo, as fontes d'água e os esgotos.  Isso implicou em medidas como a de fixar os cemitérios fora da urbe, considerados causadores de emanações pestilentas, e as apresentadas no primeiro plano hidrográfico de Paris, realizado em 1742.

A importância desse pensamento sobre as práticas que ocorrerão mais tarde foi possibilitar o contato da medicina com outras ciências. Por meio dessa medicina enquanto uma ciência que tratava das coisas no urbano se delineou uma noção de meio, com o desenvolvimento correlato da noção de salubridade que implicaria na concepção de higiene pública. Dessa forma, a salubridade seria a base material e social capaz de assegurar a melhor saúde possível dos indivíduos no meio urbano e, consequentemente, de uma população mais saudável e apta a produzir.

Dois casos são exemplares e ilustram essa atitude em relação ao espaço da cidade. O primeiro deles refere-se à crítica que se fez às condições do Hôtel-Dieu em Paris após seu incêndio em 1772 e que se converteu em relatório sobre os hospitais franceses à época e em projetos e soluções para o novo hospital, que deveria ser construído para substituí-lo. O segundo foi a discussão sobre a inserção do Cemitério dos Inocentes em pleno centro da cidade francesa, onde eram acumulados os cadáveres das pessoas mais pobres que não dispunham de meios para pagar por um túmulo. Essa última situação gerou nos habitantes de Paris, sobretudo do entorno do cemitério, pânico e medo em razão das possíveis emanações advindas dos corpos em decomposição, que supunham gerariam infecções na população (Ilustração 1 e 2) [3].

O caso do Hôtel-Dieu implicou em reflexões sobre as condições higiênicas dos hospitais e sua consequente espacialidade. Jacques Tenon[4], médico e membro da Academia de Ciências de Paris, relator da comissão responsável por opinar acerca da reconstrução desse hospital, o mais antigo da cidade, após incêndio que o destruiu, realizou um exaustivo inquérito sobre os hospitais da França e da Inglaterra e redigiu relatórios que subsidiaram princípios para a arquitetura hospitalar, os quais foram seguidos pelos projetistas até os anos de 1920. Jaime Benchimol (1990, pag. 192) nos diz que tais questões seriam determinantes para o "(...) desmembramento de hospitais massivos como o Hôtel-Dieu, perigosamente encravados na aglomeração urbana, em unidades menores, afastadas da cidade. (...)" e para a escolha da tipologia pavilhonar. Tal tipologia com edificações isoladas ocupadas por funções diferenciadas - desde enfermaria para doenças específicas até serviços de apoio, disporia de passagens e caminhos abrigados para conectá-las, viabilizando a separação de doentes e doenças e, sobretudo, a disponibilização de "um considerável volume de ar, continuamente renovado pelos ventos." O ar viciado seria uma das principais questões recorrentes nos discursos e polêmicas acerca da salubridade do edifício hospitalar e sua espacialidade, com esse debate transcendendo a concepção miasmática e alcançando os avanços científicos do século XIX [5]. A principal questão era garantir o hospital como espaço anticontágio, uma máquina de cura em que se teria como fundamental para a construção do edifício a circulação do ar e a dispersão das possibilidades de contatos entre doentes e doenças. (BENCHIMOL, 1990)

Ilustração 1
Hôtel-Dieu, gravura do século XVIII.
Fonte: Nikolaus Pevsner.


Ilustração 2
Cemitério dos Inocentes.
Disponível em: http://www.landrucimetieres.fr/spip/spip.php?article275


Além das propostas apresentadas por médicos e desenhadas por arquitetos como respostas para o novo edifício do Hôtel-Dieu, encontramos como modelo sistematizado dessa modernização da arquitetura hospitalar o edifício projetado por Nicolas-Louis Durand[6] (1760-1835), publicado em 1802 em seu livro Précis des Leçons D'Architecture; possivelmente, uma das resultantes das discussões sobre como deveria ser o hospital higiênico e como desdobramento da modernização do campo da arquitetura na França, em que se tornava imprescindível a produção de edificações para atender novas funções públicas e a sistematização de tipos a serem reproduzidos[7]. A proposta idealizada por Durand dispunha de seis pavilhões de cada lado de uma avenida central e um pátio construído em forma alongada, ao final, o conjunto era arrematado com colunatas. Posteriormente, o modelo foi largamente difundido e reinterpretado nas construções hospitalares pelo mundo, introduzindo a ideia de pavilhões conectados (Ilustração 3).  Essa conformação possibilitava a criação de um hospital voltado para seu interior em que, mesmo dentro do espaço da cidade, estaria cercado por pátios e jardins, permitindo a contínua aeração e dispersão do ar contaminado.


Ilustração 3
Modelo de Hospital com Pavilhões Conectados

Modelo de hospital
 Fonte: DURAND, Jean-Nicolas-Louis. Précis des Leçons D'Architecture (1802)


 Hospital de Laribossiere
Fonte: PEVSNER, 1997

Novo Hôtel-Dieu, Paris (construção de cerca de 1877)
Fonte: Disponível em http://passeiosemparis.blogspot.com.br/2011_04_01_archive.html

Consideramos que o encaminhamento dado, sobretudo à localização hospitalar nas cidades, foi a indicação, a partir do ponto de vista higiênico, para que se atendesse às condições ambientais requeridas. Destacamos essa preocupação ainda no nascedouro do urbanismo no século XIX, nas chamadas utopias urbanas[8], em cujos textos veremos uma preocupação em relação à implantação dessas edificações e à salubridade dos espaços citadinos.

Exemplificando essa assertiva, destacamos Voyage en Icarie (1840), de Etienne Cabet, em que se encontravam princípios de racionalização, de higiene e de classificação com finalidade higiênica. No interior de Icara, capital de Icária, não se localizaria cemitérios, fábricas insalubres, nem hospitais. Já a obra de Benjamin W. Richarson, de 1876, o nome "Hygeia: A City of Health" sintetiza seus objetivos, entre os quais, o de ter essa cidade hipotética "o coeficiente mais baixo possível de mortalidade", com espaços amplos permeados por vazios e verdes objetivando a aeração e o conforto dos habitantes (Choay, 2005, p. 8).

Posteriormente, já no século XX, observaremos essa preocupação nas icônicas propostas urbanísticas modernas, indicando-se locais fora das áreas mais densas das cidades ou em lugar elevado. É o que se apresenta no projeto da cidade industrial de Tony Garnier (1904), em que o edifício hospitalar encontra-se em posição elevada em relação às outras funções urbanas.

Dessa forma, pode-se aferir que o lugar e a relação da edificação com a paisagem eram fatores determinantes no projeto hospitalar, apontados nesses textos e projetos no século XIX e na primeira metade do XX. Tais aspectos agiriam como coadjuvantes no tratamento e na cura dos pacientes, pois estes estariam em um ambiente propício à convalescência, bem como para a população sadia, que estaria resguardada de possíveis contaminações.

Um texto de referência para essa abordagem é, sem dúvida, o de Casimir Tollet, que propôs, na França em 1872, um sistema - o sistema Tollet, em que as construções hospitalares deveriam ser afastadas das aglomerações urbanas e localizadas em terrenos ensolarados. A superfície do terreno escolhido para implantação deveria ser ainda crescente em relação ao número de alojamentos coletivos;  a disposição das edificações deveria extender-se por todo o terreno respeitando-se o paralelismo entre os edifícios.  Esse conjunto caracterizava-se por construções de no máximo dois pavimentos em que imperava o princípio de isolamento, com cada doença e doente apartados no interior do pavilhão (TOLLET, 1894). Esse sistema, também conhecido por modelo pavilhonar (Ilustração 4), foi amplamente difundido e sobreviveu às descobertas de Louis Pasteur e à teoria microbiana.

Ilustração 4
Modelos de hospitais pavilhonares
Fonte: BENCHIMOL (1990)

Cidade e saúde no Brasil

No Brasil, segundo Maurício de Almeida Abreu (2001), a luta pela salubridade urbana se fez presente na abordagem sobre as cidades entre 1870 e 1930 e, ouso dizer, se consolidou em políticas públicas de saúde e sobre o espaço das cidades por todo o período do primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945) (AMORA, 2006).  Segundo Abreu: "A partir de considerações de ordem higiênica, os núcleos urbanos herdados de tempos anteriores foram avaliados, criticados, repensados; muitos deles transformados. Por sua vez, a criação de novas cidades, e dos novos arrabaldes nas cidades pré-existentes, foi guiada por preocupações semelhantes"[9].

O pensamento higienista orientou, em um primeiro momento, esse espírito transformador, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX. Essa concepção teve origem na obra do médico grego Hipócrates [10], Sobre os ares, as águas e os lugares, e fundamentou, no século XVII, o pensamento do médico inglês Thomas Syndenham de que haveria uma íntima correlação entre as patologias e as condições do ambiente e, assim, as intervenções nas antigas estruturas urbanas valorizaram, entre outros aspectos, a ação dos ventos e a utilização da água, originando as redes de saneamento urbano (URTEAGA, 1980 e AMORA, 2012). Segundo Abreu, (op. cit.) haveria um consenso de que os surtos epidêmicos que grassavam as cidades poderiam ser contidos por meio de medidas profiláticas sobre a geografia e os elementos urbanos que compunham as mesmas, como:

aterrar mangues, pântanos e brejos; arrasar colinas que impediam a livre circulação dos ventos; alargar ruas existentes e exigir que as novas se conformassem aos novos padrões; afastar as construções umas das outras; exigir que todos os cômodos das habitações tivessem janelas para o exterior; construir porões para separar as habitações do solo úmido; combater as habitações coletivas que a produção rentista de moradias disseminava pelas cidades; proibir aterros intramuros; localizar adequadamente matadouros e fábricas que trabalhavam com matéria orgânica (de sabão e velas, curtumes, etc.); dar tratamento final adequado ao lixo e às "imundices".

Medidas semelhantes, entretanto, já haviam sido propostas no final do século XVIII e retomadas em princípio do XIX. Assim, pode-se aferir que foi durante o século XVIII, no âmbito da política territorial ultramarina portuguesa, que teve início essa preocupação com saúde na cidade do Rio de Janeiro e, por consequência, essa forma de atuação se estendeu ao restante da colônia.

Maria Rachel Fróes Fonseca (2008) [11], ao discorrer acerca da saúde na capital da colônia nesse período, nos fala que a partir de então foram intensificadas medidas de higiene e defesa da saúde, as quais ao final do século passaram a vigorar nas demais cidades sem se configurarem como políticas. Dentre as normativas adotadas, estava a determinação da limpeza dos quintais e das ruas, com a eliminação de lixo e dejetos, o isolamento de doentes acometidos de moléstias contagiosas e a instalação de Hospitais Militares e Santas Casas. Creditava-se ao sítio da cidade do Rio de Janeiro - m baixio próximo ao mar com a baía e morros ao seu redor - a falta de salubridade, umidade e a inexistência de plena circulação dos ventos, o que propiciaria o surgimento de doenças. As construções assentadas em terrenos inadequados, em pouca altura, as dimensões reduzidas e a pouca circulação de ar agravariam esse quadro mórbido da urbe sobre seus habitantes. As medidas propostas implicavam em ações sobre o espaço físico da cidade, como a alteração da sua topografia, a derrubada de edificações, o arrasamento dos morros do Castelo e Santo Antônio (Ilustração 5) e a construção de casas sob a supervisão de gente capacitada. Enfim, desde esse momento, já se percebia no Brasil ser fundamental agir sobre o meio, limpar as ruas, secar os pântanos, deslocar os cemitérios.

Ilustração 5
Cidade do Rio de Janeiro. Panorama de 1860. Com a presença, à direita, dos morros do Castelo e de Santo Antônio. 
Litografia de Emil Bauch. Disponível em http://vitruvius.es/revistas/read/arquitextos/08.096/143

Esse paradigma hipocrático vigorou por muito tempo e as cidades eram vistas como locais potencialmente favoráveis à proliferação de moléstias, pois não era possível o  equilíbrio dos diferentes fluidos, possíveis veículos de contágio (GUIMARÃES, 2001). A partir de 1880, as descobertas de Louis Pasteur levaram à chamada revolução bacteriológica e tiveram consequências significativas sobre esse pensamento, colocando em xeque a ideia de que os miasmas, as emanações pestilentas, fossem os causadores das doenças. Longe disso, o crédito na disseminação das enfermidades passou a ser dado aos organismos microscópicos, transmitidos aos seres humanos pelos chamados vetores, dentre os quais se destacavam os insetos. 

No plano urbanístico, o novo paradigma implicou numa mudança na concepção de como intervir nas cidades e o verbo higienizar foi substituído pelo verbo sanear, o que significava uma visão técnica e devidamente ancorada na ciência na qual a cidade foi pensada como uma grande engrenagem cujas peças deveriam se ajustar. Amparados no positivismo, os engenheiros, como os destacados Francisco Saturnino de Brito e Theodoro Sampaio, traduziram por meio do tripé sanitarismo - circulação - estética seus ideais científicos nas intervenções urbanas com planos de melhoramentos, nos quais se dava destaque ao saneamento, sobretudo visto como drenagem urbana, e às redes de infraestrutura - circulação, iluminação pública, abastecimento d'água, esgotos sanitários (ABREU, 2001 e LEME, 1999).

As mudanças relacionadas à forma hospitalar nesse período não são significativas e as edificações propostas ainda seguiram o modelo pavilhonar até a primeira metade do século XX, sobretudo para os hospitais dedicados às doenças tratadas em regime de isolamento como a hanseníase, a tuberculose e as doenças mentais. Emerge, entretanto, nesse momento, o debate sobre a validade do uso de pavilhões e sobre o despontar das possibilidades técnicas para a verticalização e para o modelo em bloco (Ilustração 6).

Ilustração 6
Formas de Modelo em Bloco.
Fonte: Mauro Camargo (1930)

A questão do lugar e da qualidade do edifício são argumentos questionados. Em relação ao lugar, se discute o valor crescente da terra urbana como argumento válido para ambos os modelos. Com a teoria microbiana, tornara-se possível concentrar as diferentes enfermidades em um mesmo local e verticalizar seria a resposta dada pelos meios técnicos à operacionalização da administração (CARDOSO, 1927). O retorno da possibilidade da centralidade do edifício hospitalar é, no entanto, refutado por aqueles que consideravam a paisagem urbana e a poluição sonora e do ar nocivas para a cura, com o ambiente hospitalar contaminado não mais por micróbios, mas por poluentes advindos das atividades urbanas (CAMARGO, 1930).

A estética e a paisagem eram temas debatidos como contribuintes para a cura. Em artigo intitulado "O hospital moderno", publicado na revista Ilustração Brasileira de julho de 1909, os novos hospitais são descritos como inspirados pelo padrão Tollet, compostos por "modestos pavilhões térreos, alegres e claros, ao longo de canteiros floridos e por entre árvores de um parque" e aconselha-se a presença de obras de arte nos edifícios[12]. Essas características das condições do lugar também são propostas em um livro sobre arquitetura hospitalar difundido entre médicos, arquitetos e engenheiros brasileiros, cuja primeira edição é de 1918. O autor, o arquiteto norte-americano Edward Stevens, diz que na implantação dos hospitais deveria se levar em conta o local - sua localização e as características físicas do meio em que estaria inserido - como fator que contribuiria para a cura dos pacientes, (STEVENS, 1918). Stevens falava não só da orientação dos terrenos quanto a insolação e ventilação, mas sobre sua localização em relação a indústrias e outros elementos poluidores, acessibilidade ao público e, finalmente, a importância do tratamento paisagístico do entorno das edificações, propiciando locais de contemplação e descanso, coadjuvantes no tratamento dos enfermos.

Outro argumento acerca dessa preocupação com a implantação de hospitais na cidade refere-se à existência do decreto 6.000 - Código de Obras e Legislação Complementar - lançado em 1937 pelo Distrito Federal[13] para regulamentar as construções na cidade do Rio de Janeiro. Esse instrumento urbanístico aponta elementos para discutirmos as propostas de construção dos espaços de saúde no Brasil, já que a capital do País foi referência para as cidades brasileiras. Nessa regulamentação, os hospitais foram classificados e separados em três grandes categorias: hospitais gerais; asilos, que incluíam os hospitais de alienados, crônicos, tuberculosos e doentes mentais; e os gratuitos; talvez se referindo aos postos de assistência e aos ambulatórios. O documento refletia acerca da localização dessas construções na cidade e não permitia a construção de novos hospitais e casas de saúde nas áreas majoritariamente industriais, portuárias e comerciais, possibilitando a edificação em algumas zonas residenciais, rurais e agrícolas (AMORA, COSTA, FILGUEIRAS e MAGALHÃES, 2014).

Nos anos seguintes, observaremos na construção de hospitais gerais em bloco a atenção com o entorno das edificações com a presença de jardins projetados, como contraponto à sua presença em áreas mais urbanizadas ou para destacá-los e protegê-los em um dado conjunto urbano. As parcerias de arquitetos cariocas com o paisagista Roberto Burle Marx garantiram a qualidade estética e funcional dos jardins dos hospitais. Diferentemente da tendência internacional de pensar o jardim a partir da sua funcionalidade, aqui se tomou outro caminho, com o jardim concebido como parte da arquitetura, que se constituía em um núcleo duro, marcado pela arquitetura racional, e um núcleo mole, composto pela organicidade do jardim[14]. Essa unidade se completava com a inserção da escultura e do painel mural, uma clara posição em direção ao conceito do projeto integral, junção de todas as artes. Como exemplos devemos citar o Hospital da Lagoa, realizado em parceria com Oscar Niemeyer (1951-1959), e o Instituto de Puericultura, com Jorge Machado Moreira (1949-1953), que constituem patrimônios modernos exemplares de hospitais integrados a jardins (Ilustração 7). No Instituto de Puericultura, encontraremos ainda um painel de azulejos do paisagista, que realizou posteriormente o painel do saguão e o jardim vertical do Hospital Souza Aguiar com o arquiteto Ary Garcia Roza. Tais iniciativas, de arquitetos atentos e atualizados, corroboram para o argumento de que estariam presentes na concepção da edificação de saúde moderna os aspectos estéticos e de relação com o lugar como elementos importantes para o tratamento e a cura dos doentes.

Ilustração 7
Hospitais Modernos e Jardins.

Hospital da Lagoa
Projeto de Oscar Niemeyer 
Jardim de Roberto Burle Marx
Fonte: Revista Módulo, v. III, n. 14, 1959

Hospital de Puericultura
Projeto de Jorge Machado Moreira 
Jardim de Roberto Burle Marx
Fonte: CZAJKOWSKI, Jorge (Org.). Jorge Machado Moreira. Rio de Janeiro: SMU; Centro de Arquitetura e Urbanismo, 1999.

Considerações finais


Ocorreu historicamente uma relação entre a proposição de uma moderna arquitetura de saúde e o pensamento sobre a cidade. Esse pensamento se estruturou na articulação do campo da saúde, do urbanismo e da arquitetura e buscou dar soluções para a complexidade do crescimento urbano e para os problemas do campo da saúde. No Brasil, vai se alicerçar dentro de um processo em que o Estado, após a revolução de 1930, será o promotor da modernização, objetivando a construção da nação e da nacionalidade, o que implicará em crescentes investimentos em obras públicas e em pessoas qualificadas para projetá-las (AMORA, 2006).

Por sua vez, a arquitetura produzida na Europa e nos Estados Unidos influenciou na construção de modelos periféricos, que foram adaptados às necessidades e condições técnicas, aos materiais e às estéticas locais, que vieram a se tornar suportes de significados e podem ser considerados como "lugares de memória" (NORA, 1993), como memórias concretas tendo a dupla função de documentos e monumentos para o entendimento da espacialização do pensamento médico e arquitetônico (LE GOFF, 1996; AMORA, 2010).

Consideramos que os modernos edifícios de saúde possam ser incluídos como suportes para arcabouços simbólicos e que possam difundir ideias a partir dos elementos formais e funcionais da arquitetura, que cumpre o papel de veículo de comunicação de massas, como uma obra cuja recepção se dá coletivamente no cotidiano da cidade (BENJAMIN, 1985). Muitas dessas edificações de saúde foram pensadas para terem o que Alois Riegl (1987) chamou de valor intencional de recordação, pois, ao longo da história, os campos do conhecimento foram representados por meio da criação de aparatos simbólicos, os quais incorporaram a arquitetura e as edificações com caráter mais espetacular, com vista a adicionar distinção a um determinado grupo social.

Ilustrativa desse aspecto funcional e simbólico é a rica literatura que encontramos sobre arquitetura hospitalar, produzida durante a primeira metade do século XX em que estava presente uma discussão sobre a questão do lugar e a inserção desses edifícios nas cidades. A moderna arquitetura carioca hospitalar dos anos de 1950 se vale da relação entre edifício e jardim para criar um contraponto entre o hospital e a cidade, destacando a construção e ao mesmo tempo dando-lhe condições ambientais favoráveis para sua finalidade de tratamento e cura.

Observamos, entretanto, que essa atitude de preservar o edifício hospitalar do cotidiano urbano se faz presente no projeto mais contemporâneo do arquiteto mineiro, formado pela Escola Politécnica de São Paulo, Jarbas Karman para o Hospital Geral da Guarnição do Galeão, projetado em 1967 e concluído em 1976. Há nesse projeto uma generosidade para com o usuário, mas, sobretudo a explicitação do conhecimento sobre a importância da existência dos espaços abertos ajardinados (Ilustração 8)[15]. Isso talvez não tenha sido apenas adquirido pela consulta à bibliografia, mas pelo âmbito do intercâmbio profícuo que promoveu entre arquitetos dedicados aos projetos de saúde, como na organização do I Curso de Planejamento de Hospitais no IAB de São Paulo em 1953. Nesse curso esteve presente o arquiteto Jorge Machado Moreira, autor do Instituto de Puericultura no Campus da UFRJ na Ilha do Fundão, um dos membros da equipe liderada por Lucio Costa de arquitetos autores do edifício do MESP, atual Palácio Capanema, grupo que dispensou especial atenção ao jardim como parte integrante do projeto na edificação moderna.

Finalizando, consideramos que cabe a nós, pesquisadores, desvendar os significados ocultos desses projetos e retorná-los aos usuários das edificações e aos habitantes das cidades em geral, permitindo-lhes a percepção dessa relação entre a arquitetura para a saúde e a construção histórica das cidades, propiciando às pessoas comuns o entendimento dessa dimensão temporal do urbano e do valor desses edifícios.


Ilustração 8
Hospital Geral da Guarnição do Galeão. Vistas dos pátios ajardinados.
Fonte: Acervo IPH

Notas

[1] Tais poderes eram detidos por leigos, pela Igreja, por comunidades religiosas, corporações com autonomia e jurisdição próprias, além de representantes do poder estatal.

[2] Foucault (1979) refere-se ao processo de urbanização com o consequente deslocamento da população camponesa e suas contradições, com as classes que detinham capital e poder, do campo para as cidades.

[3] Segundo Foucault (1979), quando se pensa na transferência do Cemitério dos Inocentes no século XVIII para fora de Paris, se solicita a Antoine François de Fourcroy (1755-1809), grande químico da época, um parecer sobre o que se deveria fazer em relação à influência desse equipamento na cidade.

[4] Os relatórios foram publicados por Tenon em forma de livro sob o título "Mémoire sur lês Hôpitaus de Paris", em 1788.

[5] Nikolaus Pevsner, em History of building types, cita trabalhos sobre a importância da ventilação nos hospitais, entre eles o de Henri Louis Duhamel de Moreau - Différents moyens pour renouveler l'air des infermeries (1748), o de Stephen Hales - Description of ventilators (1743) e o de Claude Leopold, de Genneté - Nouvelle construction de cheminées (1759) (PEVSNER, 1997 [1970]). No século XIX, a contribuição de Casimir Tollet marcou época. Em 1878, as "salas Tollet" com abobadas favoreciam a circulação do ar viciado das enfermarias hospitalares, e receberam o primeiro prêmio do júri da Exposição Universal de Paris (CABANAS; IBANEZ, 2006, apud TOLEDO, 2008).

[6] Durand, discípulo de Etienne-Louis Boullé, foi professor da Polytechnique e teve uma contribuição inestimável para a teoria arquitetônica ao considerar como finalidade primeira da arquitetura a sua utilidade social, propondo pela primeira vez uma padronização do projeto arquitetônico (BIERMANN et al., 2003), subordinando a questão artística à função.

[7] Essa reflexão acerca da modernização do campo da arquitetura para a saúde é parte da temática dos estudos de pós-doutorado que realizei junto à Casa de Oswaldo Cruz, sob a supervisão de Jaime Benchimol.

[8] Françoise Choay (2005) chamou as ideias sobre como deveriam ser as novas cidades apresentadas por intelectuais, médicos e polemistas no século XIX de pré-urbanismo.

[9] O texto está publicado no website do Observatório Geográfico de América Latin (http://observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/) nas memórias dos encontros e não está paginado.

[10] A obra do médico grego Hipócrates, o chamado "pai da medicina", que viveu entre os anos de 460 a.C. e 370 a.C., apesar de descobertas significativas, norteou o pensamento médico até  Pasteur.

[11] Esta autora chama atenção para a existência de documentação em que é possível perceber a intenção de um maior cuidado para com o espaço citadino e sua salubridade. A primeira delas é o inquérito promovido pelo Senado da Câmara do Rio de Janeiro em 1798 em que foram feitas sete questões para serem respondidas, quatro delas eram referentes à saúde e à salubridade. A outra documentação é a publicação, em 1813, de texto contendo respostas ao questionário.

[12] Revista Ilustração Brasileira, ano 1, número 3, julho de 1908, pág. 54.

[13] Refere-se à cidade do Rio de Janeiro, que foi capital da república de 1891 - ano da proclamação - a 1960, quando esse posto foi ocupado pela cidade planejada de Brasília.

[14] Agradeço ao amigo Cesar Floriano dos Santos, estudioso de Roberto Burle Marx e de História e Teoria da Arquitetura, por essas reflexões.

[15] Vale destacar a volta dessa tendência e o retorno do edifício hospitalar em pavilhões conectados, que pudemos perceber em apresentações de novos projetos hospitalares durante o último congresso da ABDEH em 2014. Os projetos de grande qualidade, apresentados pelo arquiteto argentino Mario Corea, seguiam esse caminho.

Referências

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