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Publicações Revista IPH Revista IPH Nº 16 A Casa de Parto do Rio de Janeiro: referência de atendimento ao parto humanizado e de resistência aos percalços da gestão pública

A Casa de Parto do Rio de Janeiro: referência de atendimento ao parto humanizado e de resistência aos percalços da gestão pública Cristiane N. Silva

Introdução


Este artigo é parte da tese apresentada pela autora ao PROARQ/FAU/UFRJ para obtenção do título de doutoramento em arquitetura[1] . A tese trata do estudo da ambiência nos espaços de nascer, com recorte específico nos centros de parto normal, observando os aspectos sensíveis que impactam e influenciam a percepção e a subjetividade dos usuários desses ambientes. Foram utilizadas metodologias de pesquisa qualitativa e quantitativa em dois estudos de caso, ambos em centros de parto normal na cidade do Rio de Janeiro. Um deles, a Casa de Parto David Capistrano Filho, é apresentado como modelo, tanto em função do papel no histórico do movimento para humanização do parto nesta cidade quanto pelos resultados encontrados em sua avaliação como parte do estudo de caso.  Os "lugares de nascer" (BITENCOURT, 2007), dentro da estrutura dos ambientes de atenção à saúde, podem ser pensados como locais aonde as pacientes vão, não em busca de um diagnóstico - afinal como menciona um ditado popular: "gravidez não é doença" - mas principalmente de acompanhamento, cuidados e atenção para levar a termo com segurança o nascimento de seus filhos. Em contraponto às associações negativas geralmente trazidas pelo ambiente hospitalar, tais como medo e insegurança, inerentes ao estado de doença, são associados positivamente à chegada da vida, ou deveriam ser, uma vez que esta não é a realidade encontrada em grande parte das instituições públicas destinadas ao parto no Rio de Janeiro.

Os ambientes destinados ao parto e nascimento, em sua configuração formal e física estabelecida para os Centros de Parto Normal intra-hospitalares, não conseguem suprir as necessidades dos usuários no que se refere a propiciar ambiências que proporcionem sensações de privacidade, identidade, apropriação, segurança e controle, dentre outros que direcionam e modificam as experiências, a vivência e a qualificação pessoal dada por cada indivíduo aos ambientes. É justamente neste contexto que se destaca a Casa de Parto David Capistrano Filho - a Casinha - ao obter resultados que demonstram ser um excelente exemplo de como planejar, projetar, construir e cuidar de um "ambiente de nascer" que atende a praticamente todas as expectativas em relação à ambiência e deixa clara a necessidade de elementos que vão além da composição física, envolvendo recursos, planejamento, metodologia de trabalho diferenciado, empatia, treinamento de equipes, educação e informação, dentre outros que, juntos e em uma estrutura física adequada, resultam em experiências muito positivas aos usuários no trabalho realizado, na convivência, no protagonismo e na experiência positiva do parto para as mulheres e suas famílias.


1. Lugares de nascer - em busca da dimensão humana

A institucionalização da assistência humanizada à mulher, preconizada pelo Ministério da Saúde, visa garantir a gestante o acesso ao atendimento digno e de qualidade no decorrer da gestação, parto e puerpério. (BRASIL, 2000)
O movimento pela humanização do parto no Brasil foi incentivado por experiências acontecidas em vários estados, desde a década de 1970, bem como por profissionais inspirados nas práticas utilizadas pelas antigas parteiras ou mesmo pelas tribos indígenas do País. A década de 1980 traz consigo a criação de vários grupos que não somente oferecem assistência humanizada à gravidez e ao parto, mas também propõem mudanças nas práticas a estes relativas.  Esses movimentos apoiam, promovem e reivindicam a prática do atendimento humanizado ao parto/nascimento em todas as suas etapas, a partir do protagonismo da mulher, da unidade mãe/bebê e da medicina baseada em evidências científicas. Dentre seus objetivos, podem ser listados: a finalização de intervenções médicas aplicadas por simples conveniência de uma ou ambas as partes (médico e paciente) ou do hospital; a instituição do respeito às particularidades de cada mulher e às suas preferências para o momento do parto; a redefinição das relações humanas na assistência; o entendimento do parto como um momento sagrado e, portanto, merecedor de reverência (DINIZ, 2005). 

No que tange à arquitetura, a humanização do parto traz dois aspectos fundamentais: o primeiro é a determinação de que seja dever das unidades de saúde receber com dignidade a mulher, seus familiares e o recém-nascido, o que demanda, além da mudança no atendimento prestado por médicos e demais profissionais de saúde, intervenção na organização física, de forma a criar um ambiente receptivo e acolhedor. O segundo determina a adoção de medidas e procedimentos sabidamente benéficos para o acompanhamento do parto e do nascimento (DINIZ, 2005), o que inclui pensar os ambientes destinados ao parto. No contexto da influência na arquitetura, cabe a esta encontrar meios de devolver ao parto o ambiente conhecido, acolhedor e familiar, cuja medicalização o levou para o ambiente hospitalar, frio, controlado e que pode ser percebido como um local "impessoal e desconhecido", criando situações que vão do desconforto e frieza (COELHO, 2003) à solidão e à depressão.

Os projetos arquitetônicos destinados ao parto e nascimento têm sido revistos e repensados nas últimas décadas em conjunto com as demais questões relacionadas às práticas dos cuidados obstétricos no Brasil, com grande incentivo de programas institucionais, por meio de normas, manuais e cartilhas específicas que delineiam propostas para a qualificação e humanização da estrutura física nos ambientes de nascer.


1.1. Os centros de parto normal


O trabalho de parto é influenciado por uma série de questões de caráter físico e emocional que interferem nas sensações das mulheres, envolvendo aspectos psicológicos, físicos, sociais, econômicos e culturais. A oferta de um ambiente para o parto que possa proporcionar às parturientes a possibilidade de apropriação e controle pode também minimizar o estranhamento e a insegurança provenientes de estarem em um ambiente que não lhes é familiar e que remete a doença, do medo em relação ao parto, em função de outras experiências vividas ou contadas e até mesmo das questões relativas à cultura e aos costumes familiares. É justamente o que sugere o conceito de ambiência quando estabelece a relação do indivíduo com o ambiente, observando-o por uma ótica direcionada por todos os aspectos pessoais que lhe são pertinentes: os sentimentos, o conhecimento, a cultura, as expectativas, os medos. Os efeitos subjetivos criados por essa gama de sensações atuam sobre e em conjunto com a percepção do ambiente, ocasionando a experiência sensível vivida pelos sujeitos expostos a ele.

Ampliou-se o conceito de cuidados centrados na mulher e no bebê durante o processo do parto, e essas mudanças de comportamento e protagonismo modificaram a forma de serem pensados e organizados os serviços de maternidades. Ainda assim, mesmo com as inúmeras normativas e recomendações vigentes, efetivamente, poucas mudanças foram feitas. Deve ser considerada, ao projetarem-se ambientes destinados ao parto, a necessidade de segurança, conforto e privacidade que todas as mulheres têm em um momento tão singular. Deve-se considerar também que essas sensações, bem como a satisfação ou não pela experiência vivida, são diretamente influenciadas dentre outros fatores, pelo ambiente onde se deu o parto/nascimento, podendo marcá-la como traumática ou satisfatória.  (WALSH, 2007)

O projeto de ambientes destinados ao parto deve considerar a necessidade de proporcionar às mulheres a sensação de liberdade para ir e vir, para que se sintam seguras e protegidas, com a possibilidade de receberem a companhia de amigos e familiares, caso desejem, proporcionar privacidade e controle pessoal, de forma que a mulher possa sentir-se segura, relaxada, confortável e protagonista de seu processo de parto. Esses são os conceitos que permeiam as recomendações, normativas e a filosofia dos projetos destinados às edificações para o parto normal e/ou natural [2] (SILVA, 2018b).

A estratégia de implantação do CPN no Brasil teve início no final da década de 1990, ganhando prioridade com a criação da Rede Cegonha no ano de 2011 e constituindo-se em uma das principais estratégias no contexto das proposições de um modelo obstétrico inovador para o parto e o nascimento (DE VICO, 2017).  Os CPNs são unidades de saúde destinadas à assistência ao parto de risco habitual, pertencentes ou referenciados a um estabelecimento hospitalar, sendo localizado nas suas dependências internas ou externas. São independentes do centro cirúrgico obstétrico, realizam o atendimento humanizado, exclusivamente ao parto normal sem distócia[3] e privilegiam a privacidade, a dignidade e a autonomia da mulher ao parir em um ambiente mais acolhedor e confortável, além de contar com a presença de acompanhante de sua livre escolha.

Os CPNs são unidades planejadas e dotadas de elementos para permitir às mulheres que o trabalho de parto seja ativo e participativo, com a utilização de práticas que o diferenciam da atenção obstétrica tradicional das últimas décadas e seguindo as recomendações da Organização Mundial da Saúde de 1996 (MACHADO E PRAÇA, 2006). Os centros de parto normal foram criados com o objetivo de "proporcionar à gestante o exercício de seus direitos relativos à privacidade e à dignidade" (MACHADO E PRAÇA, 2006), permitindo que esta dê à luz em condições semelhantes às que encontraria no ambiente residencial e familiar sem, contudo, abrir mão de acesso a recursos tecnológicos caso haja alguma intercorrência no parto.  

O modelo de assistência dos CPNs minimiza a hierarquização da relação paciente/profissional de saúde, traz a família para o processo de parto, com o direito ao acompanhante em todo o processo e visa tornar o momento do parto mais prazeroso e seguro (SILVA, 2015).  Para que essas necessidades sejam alcançadas, obrigatoriamente o ambiente físico destinado ao parto precisou passar por mudanças, fazendo com que o projeto arquitetônico dos CPNs passasse a ter fundamental importância no cumprimento do papel da unidade de saúde e dos seus objetivos. É necessário que o projetista passe a dimensionar, no processo de projeto, as implicações da relação entre o ambiente e seus usuários, além das questões relativas à humanização e à ergonomia.


1.1.1. Relação com os atributos da ambiência - Projeto e prática


Existem inúmeras questões que interferem nas sensações das mulheres no momento do parto, podendo até influenciar no andamento e condições, questões estas que envolvem os aspectos físicos e emocionais relativos ao parto em si, mas que também podem incluir aspectos psicológicos, físicos, sociais, econômicos e culturais. Considerando-se essas questões pela ótica dos projetos para os ambientes destinados ao parto, mais ainda se tratarmos dos centros de parto normal, torna-se ainda mais importante verificar quais sejam os elementos físicos desses ambientes que possam ser relacionados aos atributos das ambiências na busca da qualificação do projeto e do próprio ambiente para o parto.

O conjunto de sensações geradas pelos elementos materiais e imateriais, que identificam a forma de cada um perceber os espaços, caracteriza a ambiência de cada um deles. A ambiência expressa as atmosferas materiais e morais que permeiam e envolvem sensações relacionadas, por exemplo, à luz, ao som e à temperatura dos ambientes (AMPHOUX, 2004 citado em SILVA, 2018b), bem como as sensações relacionadas a privacidade, identidade, controle, segurança, territorialidade, dentre outros.  Nos estudos de ambiência não se considera simplesmente a composição do espaço, mas a inter-relação deste com a experiência sensível que é ocasionada nos sujeitos que o habitam (SILVA, 2018a). Para este estudo foram observados atributos relacionados aos seguintes itens:

  • Recepção e acolhimento (porta de entrada): A recepção é o primeiro lugar onde a mulher e sua família devem sentir-se abraçadas ao chegar à maternidade. É a porta de entrada para o local que se destina a oferecer confiança, auxílio e sensação de acolhimento à parturiente, onde ela pode começar a sentir-se em segurança desde o início do processo de parto.  É também onde começa a ser efetuado o acolhimento e, portanto, é de primordial importância que nela se inicie também o processo de humanização e qualificação da ambiência proporcionada aos usuários.
    O acolhimento adequado da mulher e de seu acompanhante, considerando todos esses aspectos, contribui para o estabelecimento de um vínculo de confiança e segurança, auxiliando na tranquilidade da gestante e no seu protagonismo no trabalho de parto. 
  • Quarto PPP: Um dos principais ambientes a caracterizar os centros de parto normal são justamente os quartos PPP, destinados à realização dos procedimentos de pré-parto, parto e pós-parto. A RDC nº 36/2008 os descreve como "um ambiente único e reservado para o acompanhamento e realização do trabalho de parto, parto e observação da mulher e seu recém-nascido na primeira hora de vida". A reunião de todos os procedimentos relacionados às fases do parto em um só ambiente destina-se a evitar as transferências das mulheres em trabalho de parto de um ambiente para outro, além de proporcionar à mulher, ao bebê e aos acompanhantes um local reservado e tranquilo também no período pós-parto, mesmo que durante o período mínimo estabelecido normativamente. Nas Casas de Parto, a estadia nos quartos PPP é prolongada desde o pré-parto até a alta da mãe e do bebê. Os ambientes PPP, em geral, são projetados de forma a recriar um ambiente residencial, familiar e com configuração completamente diferente das salas cirúrgicas tradicionais, o que traz à paciente sensações de conforto, bem-estar e confiança. São locais onde as mulheres podem vivenciar o parto assistidas por cuidadores familiares ou amigos, que podem fornecer cuidados contínuos.  As mulheres são ajudadas a se tornarem confiantes e otimistas em espaços privados, sagrados e seguros (WALSH, 2007).
  • Aspectos relativos à cultura e à questão dos acompanhantes: É necessário observar outros aspectos relacionados aos espaços de nascer que podem gerar diferentes percepções de ambiente de acordo com os aspectos culturais que envolvem os sujeitos, uma vez que, de um ponto de vista simbólico, o meio ambiente e seus componentes estão relacionados aos códigos culturais e sociais que são humanos.  Os seres vivem, não só incorporando, mas também reproduzindo inúmeros significados relacionados aos espaços arquitetônicos construídos e suas funções  (SILVA, 2018 a). Neste aspecto é fundamental considerar não somente a mãe e o bebê, mas também aqueles escolhidos por ela para acompanhar o período de transição pessoal, familiar e social representado pelo parto e a chegada desta nova pessoa ao convívio de todos.   

Mesmo considerando a gravidez e o parto como aspectos normais e fisiológicos das mulheres, cada uma delas o vivencia como um momento especial e diferente, com experiências únicas, que incluem mudanças súbitas físicas, emocionais, sociais e familiares, compartilhado com familiares, amigos e grupos sociais aos quais pertence. Permitir a presença do companheiro/acompanhante de livre escolha da mulher na recepção, trabalho, parto e pós-parto imediato, além de ser um direito adquirido, também é uma das prerrogativas diretamente relacionadas ao cumprimento dessas condições de conforto, tranquilidade e segurança desejadas no processo de parto e nascimento. Mesmo com a regulamentação legal e inúmeras pesquisas que indicam os benefícios da presença de um acompanhante à mulher durante o parto, o percentual de gestantes que passam por esse momento sem acompanhamento de alguém de sua livre escolha, seja por desconhecimento dos direitos seja por imposição da área assistencial, em unidades públicas e privadas de saúde ainda alcança patamares significativos (FERREIRA E MADEIRA, 2016; RODRIGUEZ ET AL, 2017).

A presença do acompanhante no processo do nascimento é uma prática que favorece a segurança, a qualidade do atendimento, a humanização da assistência, a incorporação e o cumprimento das políticas do SUS sobre integralidade, universalidade e equidade no cuidado da saúde da mulher. Pode-se esperar de sua completa implantação mudanças positivas: para a mulher, aumento da sensação de segurança e apoio, respeito, conforto e estabelecimento de vínculo com sua rede familiar e social; para as equipes, estimulo à mudança dos paradigmas relativos às práticas obstétricas estabelecidas e a abraçar novas formas de pensar o cuidado e os modos de gestão da saúde (PAZ e FENSTERSEIFER, 2011; DINIZ ET AL, 2014).


2. Casa de Parto David Capistrano Filho - A "Casinha"

A Casa de Parto David Capistrano Filho foi inaugurada em 08/03/2004 pela Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, localizando-se no bairro de Realengo, Zona Oeste da cidade. A "Casa de Parto" ou "Casinha", como é chamada pelos usuários, possui 374,50 m² de área construída e está implantada em uma área extremamente carente da cidade, com recursos assistenciais parcos. Ainda assim, tem fundamental importância como referência para o atendimento pré-natal e o parto natural nesta região e no entorno (AZEVEDO, 2008).

Figura 1 - Casa de Parto David Capistrano Filho - RJ
Imagem cedida por Adriana Medeiros (2018)


2.1. Histórico da implantação


A implantação da CPDC, única do gênero na cidade até os dias atuais, é resultado direto das discussões sobre a medicalização do parto e o excesso de intervenções a que este era submetido, que cresceram no Brasil na década de oitenta com a promoção de fóruns de discussão que mobilizavam a sociedade, os profissionais e o meio acadêmico envolvidos nas questões sobre a qualificação do cuidado obstétrico no País. Esses debates e movimentos incentivam diversas ações governamentais na busca da humanização do parto, tais como a inserção da enfermagem obstétrica nos partos, a qualificação dessa categoria profissional, a limitação da quantidade de cesarianas realizadas por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) (PEREIRA ET AL., 2012), bem como a preocupação com a qualificação do espaço destinado ao parto e nascimento.

Mesmo com a motivação de qualificar e humanizar o parto, a inserção da enfermagem obstétrica nos centros de parto municipais repete o questionamento histórico sobre a qualificação e a necessidade do "saber médico" em detrimento do conhecimento e da atuação da enfermagem para conduzir e auxiliar as mulheres nesse processo. São questionadas, além da competência profissional da enfermagem obstétrica, as práticas direcionadas à humanização do cuidado, tais como a deambulação, a utilização de bolas, o parto na água, a utilização de outras posições de parto, além da tradicional deitada, a restrição da realização de episiotomia[4] e de outras intervenções desnecessárias (PEREIRA ET AL., 2012). Neste contexto das ações e discussões sobre ações para a humanização do parto, são instituídos também no País, por meio da Portaria/GM n.º 985/1999, os Centros de Parto Normal no SUS, viabilizando sua implantação nos sistemas de saúde municipais.

Mesmo formalmente estabelecida por essa primeira Portaria do Ministério da Saúde, como um ideal de unidade de saúde para a realização do parto normal, a implantação da Casa de Parto no Rio de Janeiro não teve um histórico rápido, tampouco tranquilo. A iniciativa da Secretaria Municipal de Saúde - SMS/RJ surge após a abertura da Casa de Parto de Sapopemba (SP), feita pelo Sanitarista David Capistrano[5] que, em 1999, coordenava a regulamentação e implantação dessa tipologia de unidade de saúde para o SUS. A CPDCF é a terceira nesse modelo construída no País antes da criação de qualquer normativa para os projetos a ele destinados.

A Casa de Parto David Capistrano Filho, inaugurada em 08 de março de 2004, protagonizou ao longo de seu histórico de existência inúmeros conflitos resultantes das disputas entre os segmentos favoráveis e desfavoráveis a essa tipologia de assistência, chegando a envolver até ações no Ministério Público (PEREIRA ET AL., 2012). Foram desde processos impetrados pelo CREMERJ (Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro), com questionamentos sobre a "ilegalidade dos serviços" em função da ausência de médicos no atendimento (PEREIRA E MOURA, 2009), até interdições pela Vigilância Sanitária Estadual por falta de uma licença que o próprio órgão não emitira por não reconhecer normativamente o novo modelo de estabelecimento de saúde.

Em cada um desses entraves, foi fundamental a grande mobilização por parte de entidades que defendem o parto humanizado e o direito feminino em escolher o local e a forma mais adequada para o parto, caso não haja intercorrências.  Essa mobilização findou por vencer a resistência, resultando na autorização de funcionamento pela Superintendência de Vigilância sanitária em novembro de 2009 (PEREIRA et al., 2012).


2.2. Projeto e implantação:


Uma dificuldade inicial enfrentada na concepção da Casa de Parto dizia respeito diretamente à formatação dos espaços, uma vez que ainda não havia diretrizes estabelecidas para o projeto dessa nova tipologia de ambiente para o parto. O principal norteamento do projeto para a CP carioca foi, então, a busca da domesticidade, ou seja, de referências que remetessem ao espaço seguro do lar. E o resultado foi uma Casa de Parto que não tinha "o espelho da unidade de parto hospitalar, em hipótese nenhuma" (BITENCOURT E COSTEIRA, 2018).  Além das questões relativas à necessidade de elaborar-se um novo modelo para a edificação destinada ao parto normal na cidade, havia também uma grande pressão contrária à implantação desse novo modelo.

O projeto foi elaborado pela arquiteta Iva Rosa Copedé, da SMS/RJ, com a orientação e colaboração de Fábio Bitencourt, tendo como ponto de partida para sua formalização um conceito que segue a forma básica do símbolo do SUS e da assistência à saúde: uma cruz (figura 2). A partir dessa cruz, foram criadas alas e, destas, se definiriam as ideias de como abrigar a assistência a ser prestada. Segundo explicou Fábio Bitencourt, a concepção partiu de um desenho inicial em torno dessa cruz, onde foram criadas alas (figura 3).  Partindo dessa conformação, foi criada uma grande área para a assistência efetiva, que seria exatamente o espaço maior (figura 4).  Ficavam então definidas as áreas principais que dariam base à edificação (figura 5) e que seriam subdivididas em ambientes diversos (figura 6). Posteriormente, essa ideia de setorização foi tomando forma (figura 7) e conjugando-se na ideia final (figura 8) para o primeiro esboço da arquitetura que seria desenvolvida para a casa de parto (BITENCOURT E COSTEIRA, 2018).

Figura 2 - Ilustração sobre os primeiros itens destinados à elaboração do conceito da Casa de Parto Carioca: conceito arquitetônico, disponibilidade financeira e local.
Fonte: Desenho de Fábio Bitencourt (2018)

Ainda assim, havia um longo caminho pela frente para se descobrir quais seriam os ambientes necessários e de como adequá-los às normativas genéricas vigentes para o projeto de unidades de assistência à saúde destinadas ao parto nos moldes que eram propostos pelos profissionais de enfermagem obstétrica e pelos arquitetos envolvidos no projeto. Ainda havia processos de trabalho em definição e ambientes, tais como o quarto PPP, que já recebia este nome, mas ainda era uma espécie de nó a ser desatado pelos arquitetos na concepção.

Os profissionais que trabalhavam na área da saúde da mulher se interessavam e tentavam auxiliar nos processos, uma vez que era uma ideia ainda em desenvolvimento para todos. Não havia um programa de necessidades arquitetônicas definido, como atualmente. A primeira legislação que iria regular os moldes minimamente próximos às normativas atuais, a RDC 36, só seria regulamentada em 2008, quase uma década depois. Cada parte da casa de parto foi pensada, então, como uma novidade, desenhando-se em função das atividades que iam surgindo e das necessidades que iam sendo adivinhadas pouco a pouco pelos profissionais envolvidos na concepção.

Figuras  3 a 7 - Processo de planejamento conceitual inicial para a Casa de Parto

Figura 3
Figura 4


Figura 5
Figura 6

Figura 7

Fonte: Adaptados do Desenho de Fábio Bitencourt (2018)

Os ambientes foram pensados e criados começando pela entrada principal: deveria ter salas para as atividades da mãe, o programa de amamentação, o programa para as mulheres que já tinham experiência em parto normal; sanitários; uma sala onde pudessem ser realizadas festas e reuniões, em conjunto com o espaço exterior, bastante amplo; uma recepção; um consultório de ginecologia com banheiro acoplado e uma sala para a administração da casa. Os dois "módulos laterais da cruz" iriam concentrar os serviços e o apoio técnico logístico de um lado, do outro lado, teria uma área para proporcionar entrada e saída, além de acesso à ambulância de plantão. Na área de serviço, seriam localizados uma área de expurgo, uma lavanderia com configuração similar à de uma área de serviço caseira e uma copa/cozinha. Entre a recepção e a área interna haveria um balcão, uma recepção que fizesse a transição para o espaço interior, onde haveria um posto de enfermagem, uma outra sala, que seria destinada à realização de curetagem, procedimentos de ginecologia, atenção e avaliação das mulheres. Além disso, foram projetados também quatro quartos PPP. Um deles, posteriormente, foi transformado em área de repouso da equipe de enfermagem. Na área central, seria localizado um posto de enfermagem/área de prescrição.

Cada um desses ambientes, bem como suas interligações, vai caminhando para um desenho arquitetônico definido como dois grandes eixos que se cruzam e vão recebendo complementações para fechamento dos blocos pensados pelos arquitetos: o bloco mais pesado, que é o da assistência efetiva (os quartos PPP, a sala de atendimento, o posto de enfermagem e a área de prescrição), os blocos laterais, que atendem à área de serviço e a entrada e saída alternativa para pacientes e pessoal da ambulância, e a área frontal, destinada a recepção, acolhimento, eventos, reuniões e administração. É segundo a distribuição desses usos e dos processos neles inseridos que a arquitetura ganha forma, adequando-se às dimensões do terreno disponibilizado para a implantação.

A composição final do projeto é uma estrutura muito simples, finalizada contando com consultório, sala para reunião de grupos educativos (ainda denominada como sala de utilidades), sala de espera, posto de enfermagem, sala de parto ou sala de cuidados que podia funcionar como consultório, três suítes para internação, sala da direção, lavanderia, sala de guarda de material de consumo e cozinha e solário na área central. Externamente, foram localizados o estacionamento e a varanda.  Para toda a casa, foi utilizada "uma ambientação em tons suaves, mobiliário de vime, almofadas coloridas, fotos de mulheres e de crianças em atividades na própria unidade, tornando o ambiente bastante acolhedor" (AZEVEDO, 2008).

Figura 8 - Figura final do planejamento conceitual para a Casa de Parto
Fonte: Desenho de Fábio Bitencourt (2018)

Figura 09 - Implantação - Casa de Parto David Capistrano Filho - Projeto para reforma - 2009
Fonte: SMSDC/RJ

Figura 10 - Layout atual da Casa de Parto David Capistrano Filho
Fonte: As-built de Cristiane N. Silva, 2018.

Além da configuração física e estrutural da construção, o "clima de domesticidade" inicialmente buscado e que norteou a programação arquitetônica para a casa de parto, é intensificado pela ambientação planejada e instalada, com pintura interna e externa em tons de rosa e salmão; mobiliário que remete a um ambiente caseiro desde a recepção até os quartos PPP, incluindo poltronas, almofadas, camas de casal, entre outros que podem ser encontrados em qualquer residência; gerando ambientes reconhecíveis e acolhedores para as "clientes", seus familiares e todos os demais que a frequentam. Essas características permanecem praticamente inalteradas até os dias atuais, depois de quinze anos de funcionamento. Mesmo sendo perceptível a necessidade atual da Casinha de receber cuidados, tais como repintura; correção de infiltrações por capilaridade, comuns nas áreas circunvizinhas; corte de grama e reparos variados na estrutura física, o que chama atenção logo que se adentra na área de recepção é a atmosfera do lugar, que recebe, acolhe e deixa à vontade todos os visitantes.


2.3. Referencial assistencial


Por tratar-se de um Centro de Parto Normal Peri-Hospitalar (independente das dependências de um hospital), a Casa de Parto tem como referência para o atendimento de intercorrências o Hospital da Mulher Mariska Ribeiro, no bairro de Bangu. O hospital de referência fica a uma distância aproximada de cinco quilômetros da CPDCF, distância esta que pode ser percorrida em ambulância, com sirene ligada, em um prazo de aproximadamente dez a quinze minutos no horário de pior trânsito.

Este CPN oferece às suas parturientes o tratamento pré-natal durante todos os períodos da gestação, tendo como principais resultados não somente o melhor monitoramento das condições da gestante, visando ao parto normal, mas também o "conhecimento prévio da gestante e família, de sua situação social, emocional e biológica, a possibilidade de vínculo aos profissionais e à unidade" (AZEVEDO, 2008).

São premissas do atendimento na Casa de Parto oferecer "um espaço seguro e agradável para mulheres e famílias que queiram (...) o parto natural com um mínimo de intervenções, participação ativa da mulher, direito a escuta, manifestações verbais e corporais", além de desconstruir o modelo medicalizado atual do parto, em retorno a um momento fisiológico e feminino, em um modelo "emancipador, polêmico e contra hegemônico" (CPDCF, 2018).

A Casa de Parto, por suas características e histórico, trabalha com gestantes de risco mínimo, atendendo não somente mulheres de sua área de abrangência, mas todas que se encaixem fora do limite das restrições impostas para a segurança assistencial das próprias mulheres e seus bebês. Foram realizados na casa de parto, até janeiro de 2019, mais de 3.260 partos, sem nenhum registro de mortalidade materna e apenas dois casos de complicações com os bebês recém-nascidos, que foram encaminhados e atendidos no hospital de referência.


3. A Casa de Parto David Capistrano Filho - avaliação dos usuários

A pesquisa da qual se originou este artigo partiu da avaliação de aspectos da ambiência encontrada nos centros de parto analisados a fim de verificar possibilidades de detectar fatores que efetivamente pudessem interferir e influenciar na percepção e na experiência desses ambientes por seus usuários. O quadro comparativo (quadro 1) demonstra a associação feita entre os atributos da ambiência considerados nos formulários da ferramenta qualitativa - Aspect - na cartilha da Ambiência institucional e nos atributos considerados pela pesquisadora para o estudo:

Quadro 1 - Relação dos itens pontuados nos formulários x Cartilha da Ambiência x atributos considerados para a pesquisa.
Fonte: Cristiane N. Silva

A tabela 1 apresenta as notas individuais atribuídas a cada um dos itens constantes dos formulários de avaliação da ferramenta Aspect, segundo a opinião de cada participante da pesquisa sobre a Casa de Parto.

Tabela 1 - Sumário dos resultados por categoria - Casa de Parto
 
Fonte: Cristiane N. Silva

A maior parte dos aspectos avaliados recebeu notas/avaliações similares de quase a totalidade dos respondentes. De forma geral, as avaliações são positivas em relação às afirmativas. Os resultados foram avaliados também, a título de verificação, pelo cálculo de desvio padrão, com resultados bastante similares. Foram avaliados os seguintes itens:

  • Privacidade, companhia e dignidade: Pacientes, acompanhantes e funcionários reconhecem ser este um aspecto plenamente atendido pelas instalações físicas projetadas para a Casa de Parto. Este item relaciona-se diretamente às condições de confortabilidade, com foco na privacidade e individualidade dos usuários. As questões relativas a delimitação do espaço pessoal, controle e privacidade são diretamente atendidas pela existência e utilização dos quartos PPP.  Esses ambientes permitem às "clientes" a possibilidade de obter um espaço individualizado e confortável, dotado de equipamentos voltados a proporcionar à mulher a possibilidade de escolha e controle sobre quase todos os aspectos de seu parto e estadia. O quarto PPP, conforme utilizado na Casa de Parto, propicia também a possibilidade de escolha entre relacionar-se ou não com pessoas fora do círculo familiar e de amigos, o que não existe em uma enfermaria compartilhada, e, primordialmente, o relacionamento da própria família com o novo membro recém-nascido.

Figura 11 - Pacientes, acompanhantes e profissionais - parto e pós-parto no quarto PPP.
Fotografias cedidas por Adriana Medeiros (2018)

Ainda em relação ao controle, um aspecto primordial a ser mencionado é que, sempre que possível, todas as determinações e desejos estabelecidos pela mulher em seu plano de parto[6] sejam seguidos conforme sua vontade, desde que não impliquem em risco à mãe e ao bebê. As questões relativas a apropriação, identidade e territorialidade perpassam a utilização dos quartos PPP, mas também sofrem grande influência da atmosfera caseira e da aparência geral da Casa de Parto, que remetem diretamente a ambientes reconhecíveis e acolhedores, oferecendo uma sensação de segurança completamente diferenciada daquela que pode ser obtida em um ambiente com características iminentemente hospitalares.

Essas questões também estão diretamente ligadas aos elos de empatia criados ao longo do atendimento pré-natal, por meio das reuniões de grupo voltadas para o esclarecimento de questões ligadas à gravidez, ao parto e aos cuidados com o bebê, das quais participam a gestante e seus acompanhantes. Essas reuniões colaboram também para o conhecimento e o reconhecimento entre profissionais, pacientes, familiares e o próprio ambiente da Casa de Parto, formando vínculos e apropriação, dando significado aos espaços e fazendo deles um "lugar" para todos os seus frequentadores, apelidado carinhosamente de "Casinha".

Os dois últimos itens considerados, percepção ambiental e cultura, permeiam todos os demais e, em relação à Casa de Parto, são por eles influenciados, devolvendo aos demais a mesma influência.  A percepção ambiental é influenciada não somente pelos aspectos físicos e de composição dos ambientes - como forma, cores, tipologia de mobiliário, a utilização das paredes como murais para expressão das expectativas das clientes - como também pelas orientações sobre os direitos das mulheres e o cheiro de bolo assando na cozinha, que chega até a recepção.

Figura 12 - Reuniões de grupo e criação de vínculos - Casa de Parto
Fotografias cedidas por Adriana Medeiros (2018)

Tudo na Casa de Parto acolhe. Esse acolhimento, se considerado em conjunto com a sensação de ter privacidade e controle, de ter consigo referências pessoais, a presença do acompanhante escolhido, além do tratamento assistencial diferenciado, são fundamentais, segundo o depoimento de algumas pacientes, para trazer a sensação de segurança e conforto em relação ao parto, minimizando os medos e preocupações trazidos dos relatos ouvidos ou de experiências passadas.

Figura 13 - Acolhimento, clima, ambiente - Casa de Parto
Fonte: Fotografias cedidas por Adriana Medeiros (2018)

  • Vistas externas: Pacientes, acompanhantes e funcionários concordam ser este um aspecto plenamente atendido pela Casa de Parto. A Casa de Parto oferece aos clientes e funcionários amplo acesso à paisagem externa pelas janelas existentes nos quartos e consultórios, bem como pelas portas sempre abertas para os jardins, ainda que lhes falte a necessária manutenção. A iluminação natural também é presente, passando através de janelas, portas abertas, tijolos de vidro e claraboias. O trânsito pelas áreas externas também é livre, facilitando ainda mais a possibilidade de acesso a essas áreas.

Figura 14 - Vista externa e iluminação natural
Fotografias de Cristiane N. Silva (2018)

  • Natureza e ar livre: Pacientes, acompanhantes e funcionários concordam ser este um aspecto plenamente atendido pela Casa de Parto. Este item interfere com os aspectos relativos ao controle e à percepção ambiental. O controle é dado, justamente, pela possibilidade de circulação irrestrita e acesso a todos os ambientes, permitindo que clientes e funcionários variem o olhar sobre ambientes onde permanecem por várias horas seguidas, caso desejarem.
    Apesar da pontuação expressiva, é necessário ponderar que, mesmo havendo a possibilidade de acesso ao meio externo e à sua contemplação pelas aberturas existentes nos ambientes, este é pouco visitado e percebido, principalmente pelas clientes, que, em geral, preferem permanecer nos quartos. Esse fato pode ter algumas causas principais, tais como: o extremo calor que é usual do bairro e da própria zona oeste; a impossibilidade de uma manutenção mais adequada dos espaços ajardinados no terreno da Casa de Parto; a falta de equipamentos que visem dar conforto e proteção aos clientes, que porventura desejem utilizar o espaço externo, tanto contra o sol quanto a visão de quem passa nas ruas que rodeiam a Casa de Parto.  

Figura 15 - Área externa - jardins - Casa de Parto    
Fotografias de Cristiane N. Silva (2018)

  • Conforto e Controle: Pacientes, acompanhantes e funcionários concordam ser este um aspecto plenamente atendido pela Casa de Parto. A possibilidade de estar em um espaço privado, durante o período de permanência, é um item primordial em relação à apropriação dos clientes sobre o espaço pessoal, possibilitando ações que seriam impossíveis em enfermarias compartilhadas e atuando na apropriação do espaço e na manutenção da identidade.  As famílias podem levar itens pessoais para exibir e utilizar durante sua estadia e contam com alternativas para regular a incidência de iluminação. Um dos itens primordiais sobre a sensação de conforto e controle proporcionado às mulheres refere-se à possibilidade de realizarem o parto da forma como desejaram, em um ambiente conhecido e com referências pessoais, utilizando para isso o método e a posição que escolheram, sempre que possível.
  • Legibilidade do lugar: Pacientes, acompanhantes e funcionários concordam ser este um aspecto plenamente atendido pela Casa de Parto. Relaciona-se principalmente ao controle e à percepção ambiental, ambos referindo-se principalmente à possibilidade de tomada de decisões e à segurança sobre o ambiente em que os indivíduos se encontram, de que forma podem neles atuar, transitar, entrar ou sair, localizar-se e obterem informações sobre procedimentos, processos e direitos primordiais para a tipologia de atendimento ali executada. A possibilidade de legibilidade do lugar traz consigo também a sensação de segurança, proveniente do conhecimento e da apropriação dos espaços.

Figura 16 - Área externa - acessos e entorno
Fotografias Cristiane N. Silva (2018)

  • Aparência interna: Pacientes, acompanhantes e funcionários concordam ser este um aspecto plenamente atendido pela Casa de Parto. Relaciona-se principalmente ao espaço pessoal, à apropriação e à identidade, à percepção ambiental e à cultura.  Por ser um dos itens cuja interpretação é mais profundamente influenciada por gosto pessoal, experiência, história e preferências dos indivíduos que observam, poderia ter avaliações mais diversas, porém, com raras exceções, recebeu nota abaixo de cinco pontos, mesmo com as visíveis necessidades de manutenção percebidas em quase todos os ambientes. Apesar de os problemas em relação à aparência serem visíveis e percebidos por clientes, visitantes e funcionários, eles perdem peso e importância frente ao conjunto do trabalho ali executado e aos resultados alcançados.

Figura 17 - Aparência interna - ambientação
Fotos Cristiane N. Silva (2018)

Os itens relacionados no quesito aparência interna mencionam espaços que remetem a ambientes caseiros e reconhecíveis, o que é perfeitamente encontrado na Casa de Parto. Esses ambientes são mantidos extremamente limpos, os ventiladores de teto ajudam a driblar as temperaturas nas áreas sem ar-condicionado. Portas e janelas abertas passam a sensação de leveza e arejamento. Os revestimentos existentes, de piso, parede e teto, nada têm de incomum, são os mesmos desde a inauguração e se repetem pelos ambientes, desde o rosa das paredes até a cerâmica dos pisos. Não há variedade nem luxo, mas há um caleidoscópio de cartazes, quadros com mensagens dos clientes, quadros com pessoas importantes para a Casinha, prêmios diversos recebidos, jardim interno com flores de plástico, cadeiras de materiais diferentes, porta-retratos nas mesas e paredes, móbiles feitos pelas enfermeiras para alguma festa dependurados no teto. Não faz nenhuma falta a diversidade de materiais de revestimento ou da cor de pintura das paredes. A aparência interna da Casa de Parto é, ao mesmo tempo, toda parecida e completamente diferente. Tem identidade própria, acolhedora e agrada completamente aos seus admiradores, que sentem falta de mais cuidado com a preservação, mas identificam-se completamente com os ambientes, participam em maior ou menor grau de sua ambientação e deles se apropriam completamente.

      • Instalações: Pacientes, acompanhantes e funcionários reconhecem que, ainda que a Casa de Parto atenda satisfatoriamente, há necessidade de melhoria nos aspectos considerados. O item trata das comodidades em geral, oferecidas aos clientes, e das condições de segurança e conforto encontradas nos ambientes e, principalmente, nos banheiros dos quartos PPP. Grande parte dos itens listados foi bem pontuada, podendo-se afirmar que a nota proporcionalmente menor do que a dos demais itens deve-se principalmente à condição de manutenção e à aparência dos banheiros, onde as mulheres exercem muitas vezes a possibilidade de realizar o parto nas banheiras ali instaladas. As banheiras não atendem à conformação da legislação atual quanto às dimensões, o posicionamento em relação ao banheiro dificulta o trabalho dos profissionais na hora do parto e as condições de conservação trazem insegurança às mulheres, ainda que muitas optem, ainda assim, por realizar o parto na água. A condição dos revestimentos nessas instalações também se encontra bastante comprometida, não colaborando para a boa percepção nem segurança na utilização do ambiente.

      Figura 18 - Banheiros de quarto PPP
      Fotos Cristiane N. Silva (2018)

      • Avaliação dos funcionários: Os funcionários reconhecem que, mesmo havendo problemas diversos a serem sanados quanto ao próprio conforto e condições de trabalho, sentem-se atendidos de forma satisfatória pelas instalações da Casa de Parto nos aspectos considerados. Este item relaciona-se diretamente às condições de confortabilidade, à visão do espaço como facilitador do processo de trabalho e à apropriação por meio da aplicação do conhecimento e da experiência dos profissionais. Interfere com os aspectos relacionados, porém com visão direcionada exclusivamente às condições encontradas e percebidas pelas equipes diversas de funcionários. Interfere ainda nas questões relativas ao espaço pessoal, controle e privacidade dos funcionários, ao observar as condições dos ambientes dadas a estes profissionais.

      Os ambientes da casinha são destinados primordialmente a atender ao serviço assistencial, o que faz com bastante qualidade, mas necessita de um olhar mais abrangente quanto às áreas de conforto, de trabalho e aos equipamentos destinados aos profissionais que nela prestam serviços. Questões como a falta de manutenção e a necessidade de ampliação de setores da Casa de Parto para melhor atendimento do público foram mencionadas por usuários participantes e não participantes da pesquisa em conversas informais durante as visitas, o que foi entendido como consequência de questões administrativas e da falta de financiamento para atender às necessidades da unidade, mas não se tornam empecilhos para a realização da assistência prestada, mesmo que influenciem a todos na percepção das condições de trabalho disponíveis.

      Figura 19 - Bancada de anotações e prontuários         
      Fonte: Fotografias cedidas por Adriana Medeiros (2018)

      • Acessos: Item avaliado com a menor nota de todos os apresentados nos formulários de avaliação. As questões referem-se às condições de acesso, à acessibilidade e à segurança dos usuários, principalmente tratando-se de mulheres grávidas, ou que podem já estar em trabalho de parto, além de famílias com bebês recém-nascidos. Interferem diretamente na percepção dos clientes sobre a possibilidade de chegarem e saírem do local com segurança e facilidade. Aliada à distância da via principal, outra questão fundamental que afeta a percepção é o entorno imediato da Casa de Parto, com ruas áridas e muito vazias, com relatos diversos de insegurança pública. Essas dificuldades de acesso e insegurança afetam não somente os clientes, mas também os profissionais e prestadores de serviço que atuam na unidade.


      4. Considerações sobre o "modelo" e a Casinha


      O modelo de Centro de Parto Normal, representado neste estudo pela Casa de Parto David Capistrano Filho, mostra, por meio dos resultados das avaliações efetuadas, tratar-se da síntese dos aspectos apresentados nas teorias, recomendações e normativas para ambientes destinados ao parto humanizado, opinião que é compartilhada não somente pelas mulheres, mas também pelos acompanhantes e funcionários.

      A Casinha também deixa claro que, apesar dos aspectos formais que fazem imensa diferença, a ambiência não depende somente da estrutura física. Nessa unidade de atenção ao parto, com a estrutura física deficitária e necessitando não somente de manutenção, mas também de ampliação, a metodologia de trabalho utilizada, a dimensão da empatia assimilada, o conhecimento e o reconhecimento, todos trabalhando em conjunto, fazem imensa diferença no resultado final do serviço a que se propõem os que lá trabalham e que recebem os que buscam o cuidado.

      Esse modelo não se resume aos aspectos construtivos e tangíveis dos ambientes edificados, mas a uma composição destes com a forma do cuidado, com a familiaridade gerada pelos protocolos de informação e esclarecimentos, por permitir a privacidade, mas incentivar a convivência, pela liberdade de trânsito, por tornar-se parte do dia a dia das famílias que o procuram, durante a gravidez e após o nascimento.  A Casa de Parto torna-se a Casinha de todos, o parto retorna à sua origem e à família. As famílias voltam para acompanhar as gestações futuras, as crianças lá nascidas são vistas pelos corredores, acompanhando outras barrigas que trazem novas crianças. Juntam-se à comunidade local em mutirões para auxiliar nas fases mais difíceis de falta de verbas ou a passeatas pela manutenção do serviço, periodicamente ameaçado de fechamento, participam de uma organização comunitária (ReParto - Rede de Apoio à Casa de Parto David Capistrano), composta de funcionários, amigos e usuários da Casa de Parto. Apropriam-se e estabelecem território.

      Os processos de trabalho e a tipologia de atendimento dado na Casinha resultam de protocolos escritos e experiências vividas pela equipe assistencial, da qual muitos profissionais participam desde antes da inauguração. São provenientes do conhecimento acumulado durante toda a existência da casa e dos partos lá executados e de toda a experiência e segurança e confiança passadas pelos profissionais sobre a qualidade do trabalho executado. A confiança passada pela equipe assistencial atua em conjunto com a empatia e o ambiente, ampliando a sensação de bem-estar físico e emocional dos indivíduos, influenciando positivamente na percepção dos ambientes como um todo, de forma a minimizar aspectos que poderiam ser percebidos de maneira negativa, estes oriundos das dificuldades de manutenção pelas quais a Casa de Parto passa atualmente.

      A Casa de Parto atende também às prerrogativas da humanização do parto sobre a necessidade de retorno do parto com risco habitual a ambientes reconhecíveis, que remetam ao caseiro, porém com possibilidade imensamente menor de intercorrências, em função do controle exercido sobre a saúde das mulheres e da experiência e conhecimento da enfermagem obstétrica, capaz e legalmente habilitada para esse exercício. Cabe a nós reconhecer a necessidade de um grande processo de mudança para que esse modelo de CPN seja não só aceito, mas também multiplicado como uma importante ferramenta para as necessárias mudanças no modelo de parto e nascimento no País. Para isto, cabe reconhecê-lo também como importante auxiliar na redução da mortalidade materna e neonatal, o que implica em mudar também a cultura do parto cesáreo, por meio da ampliação das informações e dos esclarecimentos sobre o tema, não somente à população em geral, mas até mesmo a gestores e profissionais de saúde, que ainda questionam a segurança dessa tipologia de unidade de assistência ao parto e nascimento.



      Notas


      [1] "Por ambiências sensíveis nos lugares de nascer. Percepção e subjetividade nos centros de parto normal."
      [2] Parto normal costuma ser usado como sinônimo de "parto vaginal". Quando se fala em parto natural, além de a via de parto ser a vaginal, quer se enfatizar que o bebê nasce sem intervenções médicas, como anestesia, analgésicos ou substâncias para acelerar as contrações.
      [3] Distocia fetal é a ocorrência de anormalidades de tamanho ou posição fetal, resultando em dificuldades no parto. O diagnóstico é feito por exame clínico, ultrassonografia ou pela resposta à evolução do trabalho de parto.
      [4] Episiotomia é uma incisão efetuada na região do períneo para ampliar o canal de parto. Esta é uma das principais intervenções condenadas nas boas práticas do parto estabelecidas pela OMS (WHO, 1985).
      [5] Médico e mestre em saúde coletiva, David Capistrano da Costa Filho foi líder de movimento estudantil. Sua participação constante nas Conferências Nacionais de Saúde o destacou nacionalmente pelo caráter inovador de pensar a saúde. Sua importância na saúde pública se dá principalmente por ter sido um dos colaboradores para a 'criação' do SUS. Foi responsável pela criação da primeira Casa de Parto (AZEVEDO, 2008).
      [6] O Plano de Parto pode ser uma carta ou uma lista em que a gestante determina o que gostaria e o que não gostaria que acontecesse em seu parto para garantir a qualidade da assistência e da experiência. As gestantes são orientadas sobre a abrangência possível e limitações das solicitações nas reuniões de grupo, durante o pré-natal.

      Referências:

      AZEVEDO, L.G.F. Estratégias de luta das enfermeiras obstétricas para manter o modelo desmedicalizado na Casa de Parto David Capistrano Filho. Dissertação apresentada, como requisito para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 2008.

      BITENCOURT, F. Arquitetura do Ambiente de Nascer: Investigação, reflexões e recomendações projetuais sobre conforto humano em centros obstétricos. Tese de doutoramento em arquitetura apresentada ao Programa de Pós-graduação em Arquitetura da faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro - PROARQ/FAU/UFRJ. 2007.

      BITENCOURT, F. e COSTEIRA, F. Entrevista. Entrevistador: Cristiane N. Silva. Rio de Janeiro - RJ, 2010. 1 arquivo .mp3 (110 min.).

      BRASIL. Ministério da Saúde. Programa de assistência integral à saúde da mulher. p.7-12 2000.

      _______ Regulamento Técnico para Funcionamento dos Serviços de Atenção Obstétrica e Neonatal - Resolução da Diretoria Colegiada - RDC N° 36, de 03 de junho de 2008. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Brasília - DF.  2008.

      _______ Oficina de Ambiência para o Parto e Nascimento. Rede Cegonha. HumanizaSUS. Política Nacional de Humanização DAPES /SAS Ministério da Saúde. São Paulo - SP. 2012

      COELHO, G. A arquitetura e a assistência ao parto e nascimento: Humanizando o Espaço. Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Arquitetura, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. 2003.

      CPDCF - CASA DE PARTO DAVID CAPISTRANO FILHO. Casa de Parto. Disponível em: http://smsdc-casadeparto.blogspot.com/p/quem-somos.html. Acesso em: junho de 2018.

      DE VICO. A. F. Avaliação da Implantação dos Centros de Parto Normal no Sistema Único de Saúde. Dissertação apresentada à Pós-graduação em Saúde da Criança e da Mulher, da Fundação Oswaldo Cruz e do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira. Rio de Janeiro - RJ. 2017

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      Sobre a autora:

      Cristiane N. Silva
      Arquiteta, Doutora em Arquitetura pela UFRJ, especialista em Gestão de Redes de Saúde pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca - ENSP / FIOCRUZ. Apoiadora em Ambiência Hospitalar pelo Ministério da Saúde. Atua na gestão do serviço de infraestrutura hospitalar da Superintendência Estadual do Ministério da Saúde no Rio de Janeiro e como professora de gestão de manutenção e conservação de edifícios de saúde. 

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