IPH - Instituto de Pesquisas Hospitalares

Publicações Revista IPH Revista IPH Nº 16 O caminho da morte: o fluxo e a relação entre ambientes e utentes

O caminho da morte: o fluxo e a relação entre ambientes e utentes Cris Vieira

Introdução


A morte sempre permeou o imaginário trazendo à memória aspectos negativos.  Traçar questões envolvendo o ambiente arquitetônico relacionado a este tema se faz necessário não para impedir sofrimento, ou para mascará-lo, mas para tratar de forma humana o ambiente para que a morte seja vivida adequadamente por qualquer dos atores envolvidos.

A busca por saúde vem mudando de foco e prática ao decorrer dos séculos.  No tempo Clássico, a busca por saúde era feita por meio da fé religiosa e do místico, normalmente usando-se as edificações destinadas a esses fins para se atingir a saúde física e mental.  Na Idade Média, a religião Católica esteve comprometida com a promoção e atenção à saúde.  Também havia os que adotavam práticas consideradas pagãs, ocorrendo a visão de que o adoecimento era punição, possessão ou bruxaria, sendo este período conhecido como Idade das Trevas.  Os locais destinados à saúde, onde se buscava conforto e prolongamento da vida, logo se transformaram em depósitos de problemas sociais.  Assim, ao final da Idade Média, os hospitais cresceram de tamanho e de função, absorvendo a população marginalizada e considerada como problema.  Idosos, órfãos, doentes mentais, desajustados socialmente, marginalizados, prostitutas, quem não possuía ofício e enfermos: os hospitais passaram a ter a imagem negativa potencializada com essa aglomeração de pessoas em situações diferentes.  A morte era fato, hospital era sinônimo de desordem e de morte.

No século XVIII iniciou-se a determinação da função do hospital como sendo um espaço para curar. A medicina passou a ser reconhecida como ciência e o hospital, local de tratamento. O foco era a enfermidade, as tecnologias, os medicamentos e procedimentos para alcançar a cura.

Atualmente, o hospital tem por filosofia a humanização da assistência, o que começou a ser delineado e ganhar força no final do século XX, sendo preconizado não mais as doenças e o alcance da cura, mas o paciente.

Os estabelecimentos de atendimento à saúde possuem um conjunto de ambientes definidos utilizados por diversos atores: pacientes, profissionais de saúde, administradores, acompanhantes, visitantes e colaboradores diversos.  Cada um destes utentes com relações e atividades próprias fazendo de um mesmo ambiente espaços diferentes. (SANTOS, BURSZTYN, 2014, Cap.6)

Evidenciando o fluxo da morte: delimitação do problema


Apesar de o hospital ter sofrido mudanças profundas em suas funções, tecnologias, espaços e conceitos ao longo do tempo, a morte sempre esteve presente, sendo relevante o olhar da humanização.

No planejamento da arquitetura da saúde, a abordagem da humanização demanda uma nova visão de projeto, capaz de incorporar, aos necessários estudos técnicos, formais, funcionais e econômicos, a consideração dos efeitos do ambiente sobre os seus usuários, explorando o potencial de contribuição para a sua autonomia, para o seu bem-estar e para o restabelecimento de sua saúde. (FONTES, 2007, p.55)

Tanto em reformas como na concepção de novas edificações hospitalares é necessária a consideração da influência do ambiente sobre seus utentes, e vice-versa, focando no bem-estar de todos e em todos os momentos, não descartando o momento do óbito e o morto para a elaboração do projeto arquitetônico.

Os elementos arquitecturais são nestas condições uma das matrizes da experiência individual e colectiva e tecem à sua volta um contexto que é humano e social. Neste sentido, o espaço é o objeto de uma nova interpretação: a realidade dos nossos comportamentos, e também a vida social, produzem-se e desenvolvem-se em lugares diversos que são mais que puros envelopes exteriores. (FISCHER, 1994, p.16)

O interesse pelo tema surgiu de uma conversa despretensiosa entre a autora e uma enfermeira, que buscou subsídios em matéria do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da UFRJ para contribuir com sua pesquisa de pós-graduação. Nessa conversa foi descrita uma situação desagradável para o profissional de enfermagem: a necessidade de passar com recém-nascido, que havia acabado de falecer, por locais onde havia pais que esperavam por informações de seus bebês que inspiravam cuidados e poderiam também vir a óbito. Por vezes, o profissional era parado por diferentes usuários atrás de informações e aquele, para não criar um sentimento desagradável de descrença e tristeza nestes, fingia carregar um bebê dormindo, disfarçando para não criar desespero e mal-estar. Essa situação exemplificou a importância do pensamento sobre o fluxo levando-se em consideração o trabalho do profissional e o bem-estar dos demais usuários.

Assim, revelou-se o problema central a ser desenvolvido: como trabalhar o fluxo do morto, com um limite de espaço de um programa arquitetônico, a fim de proporcionar a atividade adequada do profissional de saúde, considerando os que tiveram a perda e os demais usuários que podem ficar transtornados com a situação.


O pensamento sobre a morte e o ambiente hospitalar


Para justificar a importância do tema e caracterizar a produção nacional e internacional de arquitetura relacionada à morte e ao ambiente hospitalar, realizou-se revisão bibliográfica no mês de fevereiro de 2019.

Para tanto, foram selecionados os seguintes termos como descritores: Arquitetura hospitalar, Planejamento hospitalar, Arquitetura de saúde, Espaços de saúde, Instalações de saúde, Arquitetura de instituições de saúde, Morte, Atitudes frente à morte e Tanatologia. Foi realizada a busca por descritores no portal da Biblioteca Virtual em Saúde - BVS/Decs. Os descritores relacionados à morte foram combinados por pares com os descritores de arquitetura.

A pesquisa, aplicando-se os descritores, foi realizada na base CAPES e no portal Minerva da UFRJ e, como resultado, chegou-se ao total de 1.267 textos, conforme demonstrado no quadro 01.  Foram estabelecidos limites com o intuito de melhor especificar, reduzindo a amostra com exclusão de: textos em duplicidade, os baseados em pesquisa quantitativa, e os que se desviassem do tema em questão.  Os considerados relevantes para o estudo foram os textos que tivessem trabalhos completos disponíveis eletronicamente, em português, inglês ou espanhol, e que realmente, após leitura do resumo e de partes específicas dos textos, possuíssem correlação com o tema pretendido do trabalho em tela.  Segue abaixo resumo da busca:

Quadro 01 - Resultado da busca utilizando descritores

Descritores Banco de dados Total
MINERVA CAPES
1 Arquitetura hospitalar and morte 0 44 44
2 Arquitetura hospitalar and tanatologia 0 0 0
3 Arquitetura hospitalar and atitude frente à morte 0 12 12
4 Planejamento hospitalar and morte 1 414 415
5 Planejamento hospitalar and tanatologia 0 3 3
6 Planejamento hospitalar and atitude frente à morte 0 44 44
7 Instalações de saúde and morte 0 293 293
8 Instalações de saúde and tanatologia 0 1 1
9 Instalações de saúde and atitude frente à morte 0 72 72
10 Arquitetura de instituições de saúde and morte 0 82 82
11 Arquitetura de instituições de saúde and tanatologia 0 1 1
12 Arquitetura de instituições de saúde and atitude frente à morte 0 36 36
13 Humanização da assistência and morte 3 222 225
14 Humanização da assistência and tanatologia 0 9 9
15 Humanização da assistência and atitude frente à morte 0 30 30
TOTAL 4 1.263 1267

O quadro 01 demonstra o total dos textos segundo as bases de dados e a conjugação dos descritores. A busca em tela foi realizada em fevereiro de 2019.

Quadro 02 - Especificando as amostras

Descritores Banco de dados Total
MINERVA CAPES
1 Arquitetura hospitalar and morte 0 2 2
2 Arquitetura hospitalar and tanatologia 0 0 0
3 Arquitetura hospitalar and atitude frente à morte 0 0 0
4 Planejamento hospitalar and morte 0 1 1
5 Planejamento hospitalar and tanatologia 0 0 0
6 Planejamento hospitalar and atitude frente à morte 0 0 0
7 Instalações de saúde and morte 0 0 0
8 Instalações de saúde and tanatologia 0 0 0
9 Instalações de saúde and atitude frente à morte 0 0 0
10 Arquitetura de instituições de saúde and morte 0 1 1
11 Arquitetura de instituições de saúde and tanatologia 0 0 0
12 Arquitetura de instituições de saúde and atitude frente à morte 0 0 0
13 Humanização da assistência and morte 0 3 3
14 Humanização da assistência and tanatologia 0 0 0
15 Humanização da assistência and atitude frente à morte 0 0 0
TOTAL 0 7 7

O quadro 02 demonstra o total dos textos segundo as bases de dados e a conjugação dos descritores com a aplicação dos critérios de inclusão, de exclusão e eliminando textos repetidos.

A partir dessa primeira busca, verificou-se que a produção bibliográfica do tema morte relacionado ao fluxo no ambiente hospitalar e ao projeto arquitetônico não foi ainda alvo de estudo, ou seja, a princípio, o tema seria inédito, caracterizando, assim, a relevância do assunto.


O caminho da pesquisa


A metodologia de trabalho está baseada em duas vertentes: a utilização de bibliografias sobre arquitetura hospitalar e morte e a análise de edificações hospitalares.  Além de bibliografias conseguidas em pesquisas nas bases, serão utilizadas as obtidas no decorrer de aulas das disciplinas Arquitetura e Projeto do Lugar e Espaços de Saúde, História e Tendências do curso do Programa de Pós-Graduação de Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro - PROARQ/FAU-UFRJ.

Para se ter mais subsídios para o estudo em tela foram considerados os ensinamentos de YIN (2010) em relação à metodologia de pesquisa, sendo definidos primeiramente questionamentos-chave para nortear a realização da pesquisa:

  1. Como os fluxos do morto podem ser pensados desde o início do projeto arquitetônico?
  2. Como o morto influencia psicossocialmente os usuários do espaço hospitalar?
  3. O que pode ser identificado em projetos já concebidos como boa prática, ou não, no caminho do morto dentro de um fluxo hospitalar?
  4. O que pode ser feito durante a concepção de projetos de arquitetura para humanizar a questão da morte em relação ao caminho feito e aos diferentes usuários?
  5. Como a arquitetura pode influenciar nessa questão focando o profissional de saúde?

Segue quadro onde pode ser verificado qual o método de pesquisa mais adequado baseando-se nas perguntas elaboradas:

Quadro 03 - Situações relevantes para diferentes métodos de pesquisa.

Método (I) Forma de questão de pesquisa (2) Exige controle dos eventos comportamentais? (3) Foca eventos contemporâneos?
Experimento Como, por quê? Sim Sim
Levantamento (survey) Quem, o que, onde, quantos, quanto? Não Sim
Análise de arquivos Quem, o que, onde, quantos, quanto? Não Sim/Não
Pesquisa histórica Como, por quê? Não Não
Estudo de caso Como, por quê? Não Sim
Fonte: YIN (2010), p. 29.

Tendo três, dos cinco questionamentos, utilizado o termo "Como", evidencia-se o favorecimento da utilização da metodologia do Estudo de Casos.  Para YIN (2010) é mais apropriado, uma vez que esse tipo de questionamento lida com vínculos operacionais que necessitam ser traçados ao longo do tempo, mais do que meras frequências ou incidências, sendo caracterizado como exploratório. Ainda é importante destacar que:

O estudo de caso é preferido no exame dos eventos contemporâneos, mas quando os comportamentos relevantes não podem ser manipulados.  (...) a força exclusiva do estudo de caso é sua capacidade de lidar com uma ampla variedade de evidências - documentos, artefatos, entrevistas e observações (...). (YIN, 2010, p. 32.)


O termo "O que", dos outros dois questionamentos, possibilita a utilização de duas vertentes de metodologia: levantamento e análise de arquivo.  Nesse sentido, é apropriada a utilização desses métodos de pesquisa quando a intensão é voltada à identificação e à enumeração.

Tendo em vista a análise dos questionamentos elaborados, o estudo de casos como método a ser utilizado é o mais adequado, já que, segundo YIN (2010), esta é uma investigação de observação baseada na experiência, verificando-se o fenômeno contemporâneo da vida real quando os limites entre o fenômeno e o contexto não são evidentes.  Os fluxos em diferentes estabelecimentos de saúde perfazem situações tecnicamente diferenciadas, onde existem mais variáveis como interesse do que dados, tendo amplas fontes de evidência.


Conclusão


O caminho da morte, dentro do conceito de humanização dos espaços hospitalares, deve ser considerado como preceito já na concepção do projeto. Tendo em vista a escassa bibliografia sobre o tema morte relacionado ao ambiente hospitalar, o artigo em tela vem demonstrar a relevância do tema. Com isto, chega-se à conclusão da necessidade do estudo de equipamentos hospitalares já edificados, verificando tecnicamente os fluxos e circulações, além da relação dos utentes com o espaço hospitalar e a morte.

O estudo de casos mostrou ser o método de pesquisa mais adequado e, com o intuito de caracterizar o pensamento sobre a morte e o morto, a relação entre os que utilizam os ambientes hospitalares e o projetar da arquitetura hospitalar, chega-se à conclusão de que é necessário elencar recomendações para a elaboração de projetos arquitetônicos novos, vislumbrando a humanização dos espaços arquitetônicos com foco nos fluxos e no bem-estar dos utentes frente à morte.


Referências

FISCHER, Gustave. Psicologia Social do Ambiente. Instituto Piaget. Lisboa, 1994. (ISBN: 978-97-2929-542-3).

FONTES, Maria Paula Zambrano. Humanização dos Espaços de Saúde: Contribuições para a Arquitetura na Avaliação da Qualidade do Atendimento. Rio de Janeiro: FAU/PROARQ, 2007. [Tese]. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

SANTOS, Mauro, BURSZTYN, Ivani. O Caminho do Paciente: Conceitos e Ferramentas para a Avaliação de Estabelecimentos de Atenção à Saúde. Livro Arquitetura e Engenharia Hospitalar: Planejamento, Projetos e Perspectivas - Capítulo 6. Rio de Janeiro, Rio Books, 2015. (ISBN: 978-85-6155-658-7).

YIN, K, Robert. Estudo de Caso: Planejamento e Métodos. São Paulo, Bookmed, 2010. (ISBN: 978-85-7780-655-3).

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