IPH - Instituto de Pesquisas Hospitalares

Publicações Revista IPH Revista IPH Nº18 O Hospital Sul América e o projeto moderno na arquitetura de saúde

O Hospital Sul América e o projeto moderno na arquitetura de saúde Elza Maria Alves Costeira

Resumo


Neste artigo, apresentamos o Hospital da Lagoa, no Rio de Janeiro, objetivando ressaltar sua arquitetura como representante do patrimônio moderno e hospitalar brasileiro. Projetado por Oscar Niemeyer e Hélio Uchôa, este hospital se configurou um modelo de atendimento de sua época, evidenciando as formas de adoecimento, tratamento e cura. Com uma arquitetura capaz de absorver novas tecnologias, significou uma abordagem pioneira de conforto ambiental e humanização, incorporando painéis de azulejos de Athos Bulcão e jardins de Burle Marx. Observando suas características como lugar de memória da saúde e da arquitetura moderna, usaremos diretrizes indicadas por Gonsales (2008), tomando três dimensões interdependentes para análise: a representação da modernidade, a conservação das características originais e a autenticidade na sua preservação, visando à sua continuidade de uso e conservação.

Palavras-chave: arquitetura moderna, arquitetura hospitalar, memória da saúde.

Introdução


Ao nos depararmos com as questões que envolvem a preservação de obras arquitetônicas do movimento moderno brasileiro, encontramos importante acervo a ser estudado e protegido: trata-se da preservação de prédios hospitalares que enfatizam, ao lado da busca pelo estabelecimento de arquitetura inovadora e afirmativa das premissas do homem moderno, um modelo de atendimento hospitalar à época de sua concepção, evidenciando as formas de adoecimento, tratamento e cura.

Nesse sentido, desenvolvemos neste trabalho uma reflexão a respeito da preservação do Hospital da Lagoa, antigo Hospital Sul América, projetado por Oscar Niemeyer e Hélio Uchôa, o qual teve sua obra concluída em 1959, destacando seu papel como exemplar significativo da memória da arquitetura de saúde brasileira.

O projeto original do hospital repete a parceria dos arquitetos, iniciada no Pavilhão do Parque Ibirapuera, localizado em São Paulo, e utiliza os mesmos cânones modernistas para a sua modelagem e implantação. A obra se desenvolveu por sete anos, até 1959, tendo enfrentado uma série de dificuldades e obstáculos para sua finalização, como afirma Lauro Cavalcanti (1999, p.179). Um dos entraves à implantação do hospital era a ocupação do terreno escolhido para a sua construção por uma favela de cerca de mil moradores, conhecida como Favela da Hípica, que acabou sendo removida do local, assim como outras que havia às margens da Lagoa.

Outra dificuldade que acabou causando atrasos na construção do hospital foi a natureza do terreno, pantanoso e de difícil estabilização, como costuma ser todo o entorno da Lagoa. As primeiras sondagens exigiram cuidados redobrados na confecção do projeto estrutural, que contava, inclusive, com a construção de um pavimento em subsolo.

O prédio do Hospital Sul América da Fundação Larragoiti foi adquirido em 1962 pelo antigo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários (IAPB), por autorização do presidente João Goulart. Nesta ocasião, passou a chamar-se Hospital dos Bancários, integrando o suporte de atenção à saúde, promovido pelo sindicato da classe.
 
Em novembro de 1966, "todos os institutos que atendiam aos trabalhadores do setor privado foram unificados no Instituto Nacional de Previdência Social - INPS" (OLIVEIRA, 1985). O Hospital, posteriormente, foi integrado à rede do extinto Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), que depois teve a sua rede de assistência à saúde transferida para a gestão do Ministério da Saúde. Foi tombado em 1992 pelo Instituto Estadual de Patrimônio Artístico e Cultural - INEPAC. Posteriormente, atualizou seu nome para Hospital da Lagoa ou Hospital Federal da Lagoa, a partir de 2005, quando voltou à gestão federal após pouco mais de cinco anos de administração municipal, de 1999 a 2005. 

Nesta reflexão, pretendemos, ao observar o estado em que se encontra atualmente o Hospital da Lagoa e as ações para a conservação de suas características modernas, colaborar para um melhor entendimento das questões que envolvem a preservação das edificações modernas da saúde, frente às necessárias e constantes atualizações tecnológicas de seus equipamentos prediais para atender às diretrizes de atenção à saúde da atualidade e do futuro. A partir da adoção constante de novos procedimentos de diagnóstico e de terapia, que observamos no desenvolvimento da prática médica, acreditamos ser fundamental a análise de como as premissas construtivas do movimento moderno podem ter facilitado a atualização e as reformas necessárias que impactaram este importante projeto ao longo de sua vida.

A representação da modernidade 


A primeira dimensão para a análise da importância da arquitetura do Hospital da Lagoa, como um exemplar do movimento moderno, passível de preservação e conservação, é o seu grau de representação da modernidade arquitetônica, ou seja, das características que o tornaram um modelo de arquitetura moderna para a saúde.

Nesse sentido, não se pode negar, antes de tudo, a importância das visitas ao Brasil do arquiteto franco-suíço Le Corbusier, em 1929 e 1936, que contribuíram para a difusão de princípios modernos da concepção arquitetônica, usados para conceber e construir novos edifícios no Brasil. As ideias inovadoras apresentadas pelo polêmico arquiteto vieram ao encontro da preocupação dos brasileiros, que passaram a empregar concepções formais estéticas e modernas em seus projetos.

O Hospital da Lagoa seguiu essa tendência de inovação na arquitetura brasileira e, além de ter incorporado ao projeto os princípios corbusianos, incluiu novas abordagens no campo da medicina e administração hospitalar, como o preconizado por Ernesto de Souza Campos em seu livro sobre a conformação de hospitais. Como podemos observar em reportagem do Jornal "O Globo", de 29/7/57, o hospital estaria destinado a abrigar o que havia de mais atual em atendimento médico, além dos aspectos modernistas de representação arquitetônica.

Até meados do próximo ano, será inaugurado, nesta capital, o Hospital Sul América, que, com os seus 230 leitos, será um dos mais modernos do mundo, dotado de instalações que representam as mais recentes conquistas, tanto pelo aspecto arquitetônico (projeto de Oscar Niemeyer e Hélio Uchôa) como pelo planejamento dos serviços médicos e administrativos e pela seleção do equipamento. (O GLOBO, 1957, p.38)

As questões da modernidade que se buscava imprimir ao edifício hospitalar na ocasião da concepção do Hospital da Lagoa apontam para o posicionamento de arquitetos e projetistas frente às novas características construtivas que exaltavam os novos tempos e os novos cidadãos, que poderiam usufruir da mais avançada tecnologia médica disponível, abrigada em uma construção revolucionária e transformadora nas suas premissas de implantação, métodos construtivos, orientação e morfologia.

 Figura 1- Maquete do Hospital da Lagoa. Fonte: L'Architecture d'aujourd'hui, 1955.


Assistia-se, no período, o estabelecimento da arquitetura hospitalar como um campo a ser estudado, à medida que surgia um interesse dos profissionais de arquitetura em aprofundar seus conhecimentos em relação às diretrizes recomendadas por outros países, referentes aos projetos hospitalares. Os investimentos públicos na área da saúde realizados durante o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945) foram muito relevantes, com a construção de hospitais, postos e edificações de saúde por todo o território nacional e com a criação de escritórios técnicos em órgãos estatais. Posteriormente, nos anos de 1950, com a criação do Ministério da Saúde, a necessidade de uma maior qualificação profissional se fez sentir, conforme observado pela pesquisadora Ana Albano Amora:

A trajetória de muitos desses profissionais indica uma dedicação à construção de um subcampo específico da atividade, que culminou na realização do curso de Planejamento Hospitalar, realizado pelo IAB de São Paulo, em 1953. (AMORA, 2011, s.p.).

Neste sentido, podemos citar como determinante a instituição do primeiro curso de Arquitetura Hospitalar brasileiro, por iniciativa do arquiteto Jarbas Karman, que havia acabado de concluir seu curso de mestrado em Arquitetura Hospitalar na Universidade de Yale, nos EUA, em 1952, ano em que também participou de um curso sobre infecção hospitalar ministrado pelo Professor Carl Walter, em Kitchener, Ontário, Canadá (CYTRYNOWICZ, 2014). Como pioneiro do assunto no Brasil, Karman montou e ministrou com alguns colegas, entre eles o ilustre arquiteto Rino Levi, o primeiro curso de Arquitetura Hospitalar do Brasil, no âmbito do IAB de São Paulo, em 1953. 

 Figura 2- Foto do 1º Curso de Planejamento de Hospitais, IAB e IPH, fevereiro de 1953. Fonte: Acervo do IPH.


Em 1954, Jarbas Karman compilou um livro, onde publicou todas as palestras do curso do ano anterior. A sua publicação foi realizada pela Comissão de Planejamento de Hospitais do IAB de São Paulo, composta pelos arquitetos Amador Cintra do Prado, Jarbas Karman, e Rino Levi. Karman fundou, então, o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e de Pesquisas Hospitalares - IPH - e atuou como mantenedor da primeira faculdade de Administração Hospitalar da América Latina, onde foi diretor e titular da cadeira de Arquitetura Hospitalar (CYTRYNOWICZ, 2014). A respeito dos objetivos do curso, Karman comentou que:

Dentro de suas atividades, abrangeria todo o campo hospitalar do País. Seria o nosso centro de conhecimento e informações hospitalares. Os seus objetivos eram: 1- Realizar pesquisas hospitalares; 2- Dar estreita assistência técnica aos hospitais, de modo a elevar o seu nível e possibilitá-los a combater ou prevenir enfermidades mais eficaz e seguramente; 3- Planificar a coordenação de hospitais; 4- Desenvolver ensino e divulgar conhecimento no campo hospitalar. (IAB, 1954, p.418)

Antes disso, especificamente em 1943, encontramos importante documento que delineou o campo de pesquisa e estudos da conformação de hospitais não por engenheiros e arquitetos, mas por médicos e administradores hospitalares, através da realização do primeiro Curso de Organização e de Administração Hospitalares. Este curso, ministrado pelo médico e engenheiro Ernesto de Souza Campos (1) , conferiu a 25 médicos o título de Especialista, configurando a formação dos primeiros especialistas da América do Sul neste campo do conhecimento, segundo o Dr. Theóphilo de Almeida, diretor da Divisão de Organização Hospitalar do Ministério da Saúde, em 1943:

Compreendendo desde a formação do especialista, o planejamento das edificações e instalações, a seleção do equipamento, as normas da organização e de funcionamento, o regime econômico-financeiro, a assistência social, jurídica, cultural, religiosa e recreacional, o estudo da padronização em geral, a legislação específica, a cooperação profissional e associativa ou de classes; abrangendo, desta sorte, todo o domínio da assistência médico-social na comunidade, tanto para doentes, e de todas as classes, como para indigentes, e desajustados sociais, eis, em súmula, todo um programa, que é também a própria finalidade da Divisão de Organização Hospitalar, órgão federal especializado de coordenação, cooperação, orientação e controle das atividades deste setor, no serviço permanente da organização nacional. (CAMPOS, 1944, p.3)

(1) O médico e engenheiro Ernesto de Souza Campos, autor do livro História e Evolução dos Hospitais, foi ministro da Saúde em 1946 e, também, coautor dos projetos dos Hospitais das Clínicas de São Paulo e da Bahia.

A preocupação com os aspectos funcionais, aliada à busca pelos aspectos formais da arquitetura moderna, conformou uma série de projetos hospitalares a partir dos anos 1930 e 1940, quando a implantação em blocos verticais começava a predominar,  em meio a exemplos de morfologia pavilhonar, para expressar uma nova concepção de medicina. Esse período foi marcado pela racionalidade advinda dos cânones do movimento moderno, que influenciou as discussões sobre a arquitetura mais adequada para exprimir o homem moderno que nascia no cenário da vida urbana brasileira. 

Varrer as doenças por meio de ações preventivas e curativas e promover hábitos considerados higiênicos, controlando os cuidados dos adultos com o corpo e prevenindo as futuras gerações contra enfermidades eram ideias expressas nos princípios da disciplina da higiene, que pareciam implícitas nessa política de saúde pública articulada à ideia de modernização. (AMORA, 2012, p.53)

O Hospital da Lagoa apresentou assim o emprego das premissas modernas para a sua arquitetura, como queriam seus idealizadores: o empresário Antônio Larragoiti Júnior, os médicos Leonídio Ribeiro e Félix Lamela, responsáveis pela programação e concepção dos serviços médicos, e os gestores da Fundação SulAmérica, Companhia Nacional de Seguros de Vida. 

Ao lado do estabelecimento de uma assistência à saúde com grandes novidades para o período, pretendeu-se marcar a construção do então Hospital Sul América, concebido para atendimento dos funcionários da Fundação Larragoiti e do Banco Lar Brasileiro, não só com a técnica médica mais inovadora, mas também com uma arquitetura que traduzisse a modernidade e o avanço da, então, Capital Federal na arquitetura da saúde. Como podemos verificar nos jornais da época: 

Uma iniciativa da Instituição Larragoiti que colocará o paiz entre os de mais alto padrão de medicina - pela primeira vez funcionará o Instituto de Diagnóstico para a revisão periódica do organismo humano - a sala de recuperação junto ao centro cirúrgico é uma inovação na moderna técnica hospitalar. (O GLOBO, 1957, p. 38)

As questões arquitetônicas foram enfrentadas estabelecendo-se um projeto pioneiro para seu tempo, evidenciando o emprego das principais características do movimento moderno, as quais haviam sido demonstradas no prédio do Ministério de Educação e Saúde, antigo Palácio Capanema, ou edifício Gustavo Capanema, considerado um dos principais exemplos da nova arquitetura brasileira e que figurou com destaque na exposição Brazil Builds, realizada no MoMa de Nova York, em 1943.

No projeto, sobressaem detalhes como a planta livre, a estrutura independente - que se conforma, no térreo, em pilares em "V", característicos do arquiteto neste período (2) - a previsão de um jardim no telhado (que nunca foi implantado) e o uso de elementos de estética dos anos modernos, como os painéis da fachada oeste trabalhados em cobogós e em brises-soleil.

Figura 3- Maquete do Hospital da Lagoa. Fonte: L'Architecture d'Aujourd'hui, 1955.


(2) Os pilares em "V" no Hospital da Lagoa aparecem em outros projetos de Niemeyer deste período, como no Palácio da Agricultura, no Ibirapuera (1951), em São Paulo, e no projeto para um edifício de apartamentos na Hansaplatz (1955), em Berlim.

Como menciona Gonsales (2008), podemos considerar que a concepção do Hospital Sul América incorpora em seu âmago a expressão da modernidade quando observamos as novidades da medicina contempladas no seu programa, a cuidadosa escolha do local de sua implantação, usufruindo da vista da Lagoa Rodrigo de Freitas, e a opção pelo emprego dos conceitos da nova arquitetura, como significantes de uma afirmação de pioneirismo, marcando a obra como uma espécie de "monumento moderno" a ser apreciado e usufruído como marco nacional de arquitetura e de avanço da medicina.

Esta dimensão está indicada pelo grau de presença em um bem potencialmente patrimonial daquelas características fundamentais da modernidade arquitetônica e urbana que representam a essência do objeto em um sentido normativo e universal. (GONSALES, 2008, p.3).

A observação da concepção arquitetônica utilizada no projeto, das particularidades do programa e da tecnologia construtiva empregada aponta o "grau de modernidade" e a importância histórica da obra (GONSALES, 2008). Encontramos em Riegl considerações sobre uma obra arquitetônica contar com "valor de rememoração intencional" ou "valor de novidade", com os quais podemos estabelecer reflexões sobre a conservação do Hospital (RIEGL, 2014).

Ainda buscando sua marca como prédio que abrigava as mais recentes conquistas da sociedade de então, foi previsto, em sua arquitetura, o emprego de obras de arte traduzidas nos painéis de azulejos assinados por Athos Bulcão, além de jardins desenhados por Roberto Burle Marx, personagem marcante na tradução do moderno em projetos paisagísticos do país. 

Figura 4- Painel dos azulejos do Hospital Sul América e um dos módulos que o compõem. Fonte: ASTORGA, 2010.


A conservação do projeto original


A partir da observação do projeto original do hospital, podemos observar como a instituição pôde conservar a edificação concebida pelos arquitetos Niemeyer e Uchôa, sob algumas premissas estruturantes à época mas que, hoje, não atendem mais às exigências da arquitetura de atenção à saúde, visto a série de normas que impactaram e modificaram significativamente os projetos hospitalares a partir da década de 1990, segundo Célia Gonsales:

A importância histórica dada a um edifício faz parte de um processo de retroalimentação. Os resultados da investigação artística, histórica e científica criam um corpus que indica e sustenta um objeto como "monumento". Os resultados serão mais consistentes à medida que identificam aquela arquitetura ou espaço urbano com uma estrutura ou esquema moderno mais evidente, aqueles objetos que apresentam um real emprego dos apriorismos modernos. (GONSALES, 2008, p.11).

Neste sentido, nos deparamos aqui com as dificuldades inerentes à conservação dos projetos originais de edifícios de saúde. Se, por um lado, temos que considerar a atividade-fim destas instituições, por outro, podemos imaginar uma série de equívocos e de desconhecimento das funções que fizeram parte do programa de necessidades que inicialmente moldaram a distribuição e a hierarquização dos ambientes, assim como a infraestrutura e os espaços técnicos que apoiaram a concepção original do hospital. Fernando Diniz Moreira apresenta uma preocupação referente a essa questão:

Nossas sociedades ainda não consolidaram a ideia de que a arquitetura moderna é um produto cultural e que deve ser protegida para as futuras gerações. O reconhecimento de um edifício como um bem cultural de uma comunidade leva certo tempo. Muitos edifícios modernos estão sob risco de descaracterização ou demolição, mas muitos deles ainda não tiveram seus valores reconhecidos pela sociedade. (MOREIRA, 2010, p.155)

 
Figura 5- Fachada leste do Hospital da Lagoa. Fonte: Rio de Janeiro - NEMS, 2012.

Consideramos que, a despeito de intervenções e reformas que foram se adicionando ao projeto original, temos a sua integridade garantida a partir da continuidade do uso de seus ambientes, que, embora atualizados na função e nas premissas contemporâneas de assistência à saúde, puderam guardar as características de sua localização e suas dimensões em relação ao projeto inicial. Como aponta Ana Albano Amora:

A preservação de parte desse patrimônio, especialmente dos prédios públicos, está sendo garantida pelo uso. Entretanto, o projeto Inventário do Patrimônio Cultural da Saúde pode ser um passo no sentido da utilização do instrumento do inventário como mecanismo de salvaguarda de acordo com a Constituição Federal. Isso se constitui em avanço para o conjunto de ações de preservação nas várias instâncias governamentais. (AGOSTINHO e AMORA, 2009, s.p.) 

Especificamente, no caso do Hospital da Lagoa, que se tornou um exemplar da memória do exercício da medicina, o estudo de sua conservação deve ser considerado dentro de um campo específico de conhecimento, exercido na busca da ordenação e da implantação adequadas do objeto em tela, como em diversos projetos de conservação de exemplares do movimento moderno. 

Como nos sinaliza Riegl (2014), em toda  tentativa de intervenção para a conservação de um objeto arquitetônico, devemos nos imbuir de acurado juízo crítico e nos capacitar a fazer escolhas específicas para lograrmos atingir a pretendida preservação. Estas escolhas são evidenciadas no artigo de Cunha e Kodaira (2009) a respeito dos desafios apresentados para a restauração da arquitetura moderna, tratada, em geral, como questão da arquitetura e nem sempre como ação do campo da restauração. As autoras pontuam que:

Mesmo sendo um fato relativamente novo no campo da preservação, já é possível individuar algumas tendências frente às intervenções em arquiteturas relacionadas ao movimento moderno: uma primeira tendência é o restauro (pseudo) filológico, visando recuperar as características originais da obra; uma segunda postura, semelhante por princípio à primeira, seria a reconstrução ao idêntico de obras destruídas; uma terceira possibilidade é a atualização ou mesmo correção tecnológico-construtiva do monumento. (CUNHA e KODAIRA, 2009, p. 8)

No entanto, ainda em Riegl (op. cit), podemos imaginar a dificuldade nas escolhas do que preservar e de que modo o fazer, nos imbuindo de um espírito crítico que direciona as tomadas de decisão, quando se dá a incorporação de tecnologia. A atualização dos edifícios hospitalares não pode esperar a discussão sobre o modo como podemos conservar as premissas de modernidade frente à chegada de novos elementos técnicos e científicos.

Em 2010, foi feito um levantamento das fachadas do hospital para a sua recuperação e elaborado um documento, o Projeto Básico de Restauração do Hospital da Lagoa. Com a atualização dos ambientes, para abrigar novos equipamentos de diagnóstico e tratamento ou para atender à Vigilância Sanitária, o fato é que o hospital pôde desenvolver estas ações, acompanhadas por minucioso trabalho de conservação (GARRO, 2010).
 
Figura 6- Bloco do Ambulatório, Hospital da Lagoa. Fonte: NEMS, Rio de Janeiro, 2016.


O Hospital da Lagoa passou, também, por uma tentativa de restauração e revitalização dos seus jardins, com projeto original de autoria do paisagista Roberto Burle Marx, utilizando a documentação existente. Foram levantados documentos do escritório depositário dos projetos do paisagista e do arquiteto Haruyoshi Ono, seu colaborador. O trabalho chegou a ser iniciado, mas as mudanças de direção do hospital, somadas às dificuldades  que sua gestão vem passando, adiaram esta recomposição.

 Figura 7- Jardim do Hospital da Lagoa, de Burle Marx, 1955. Fonte: Adams, MoMA, 1991. 


A autenticidade na preservação


Com as assertivas mencionadas acima e observando os conceitos recentemente discutidos sobre a conservação dos monumentos do movimento moderno, especialmente no caso de instituições de saúde, como é o Hospital da Lagoa, nos deparamos com o questionamento sobre a autenticidade nas escolhas das intervenções pelas quais tem passado o edifício. Para ilustrarmos esta discussão, recorremos mais uma vez a Célia Gonsales, que nos fala:

A autenticidade em relação aos monumentos arquitetônicos contém sempre uma ideia de passagem do tempo, do reconhecimento e valorização do objeto através das marcas obtidas em seu devir histórico. A arquitetura moderna em geral não é eficiente sob esse aspecto e isso explica de alguma maneira sua particularidade na abordagem desse tema. (GONSALES, 2008, p.13)

Assim, há dificuldades no distanciamento temporal, presente nos monumentos antigos, em que não é preciso assumir uma postura de reflexão e busca de valores caros às culturas ou à história da arte e da arquitetura. No caso dos edifícios modernos, não temos ainda, na sua maioria, a presença da pátina do tempo a imprimir um aspecto vetusto e que induza a buscar a sua representatividade e valor na passagem dos anos e na construção simbólica da sua presença na paisagem da cidade. E, mais grave ainda, a pátina do tempo em edifícios modernos denota, na maioria das vezes, apenas uma falta de conservação adequada da edificação.

Como temos discutido, é na verificação do equacionamento das questões fundamentais da modernidade em uma obra de arquitetura que pode estar o segredo de sua aceitação pela comunidade e assim sua verdadeira autenticidade. (GONSALES, 2008, p.13)

Podemos, então, aferir que a autenticidade, no caso de estruturas arquitetônicas modernas, deve se ligar aos fatores culturais que a obra representa. As reflexões sobre as questões da conservação e da restauração dos monumentos modernos demandam o estabelecimento de escolhas e de posicionamento claro do que deve ser apagado e do que deve ser mantido, com a análise das funções ali desenvolvidas, para que se garanta a continuidade do uso. Deve ser buscada a qualidade das intervenções, para que se possa configurar, por mais que sejam atualizadas na oferta de tecnologia, exemplares do testemunho do adoecimento e da cura da época da sua concepção, da sua técnica projetual e da tradução temporal de sua implantação e relação com a cidade, para que possam caracterizar um testemunho da memória da saúde.  

 Figura 8- Fachada oeste do Hospital da Lagoa. Fonte: Módulo, Revista de Arquitetura e Artes, 1959.


Considerações finais


As edificações de saúde e, em particular, as edificações modernas, como o prédio do Hospital da Lagoa aqui estudado, podem ter sua preservação corroborada pela forte ligação, em seus programas e suas implantações, com as políticas públicas de saúde da época de sua concepção, o que reforça o mencionado neste artigo a respeito das escolhas e do conhecimento da história da edificação além das premissas utilizadas nas intervenções de atualização através do tempo.

É importante destacar que o hospital apresentado neste trabalho foi incluído na lista de obras arquitetônicas a serem protegidas e fichadas para o inventário de edifícios de saúde que compõem o Homework, do Docomomo 2012 (3) , que abordou a arquitetura hospitalar moderna brasileira, seus hospitais e sanatórios.

Mesmo com os inúmeros problemas que cercam a conservação e manutenção do hospital, sua estrutura arquitetônica permanece como um marco da arquitetura moderna e um exemplo da aplicação dos seus conceitos e tipologias na conformação de edifícios complexos, como uma instituição hospitalar, desafiando a passagem do tempo e o impacto das sucessivas incorporações de tecnologia.

(3) O trabalho de documentação do Hospital da Lagoa em parceria com o Docomomo tem seu fichamento (Fiche report) elaborado pelos pesquisadores Ana Albano Amora, Inês Andrade e Renato da Gama-Rosa Costa (DOCOMOMO, 2012).

Por essas razões, consideramos o Hospital da Lagoa um fundamental testemunho da história e do desenvolvimento articulado da medicina e da arquitetura, evidenciando a chegada de novos tempos e o estabelecimento do pensamento e da imagem do homem moderno. Ademais, recomendamos que a análise das ações de restauro e preservação que enfrentou nos últimos anos seja objeto de estudo e reflexão para apontar diretrizes para a conservação destes e de outros exemplares de memória da saúde do Rio de Janeiro.

Referências


ADAMS, William Howard. Roberto Burle Marx: the unnatural art of the Garden. The Museum of Modern Art, MoMA, New York. Exhibition catalogue: May 23-August 13, 1991. Em https://www.moma.org/documents/moma_catalogue_337_300298266.pdf. Acesso em 14 de maio de 2021.

AGOSTINHO, Maria da Graça e AMORA, Ana Albano. Edifícios para a saúde e o processo de modernização em Florianópolis, um passo para a preservação do patrimônio moderno. In: Anais... 8º Seminário Docomomo Brasil. Docomomo RIO/ PROURB, Rio de Janeiro, 2009. http://www.docomomo.org.br/seminario%208%20pdfs/101.pdf. Acesso em 14 de maio de 2021.

AMORA, Ana Albano. Paulo Motta e a arquitetura de saúde em Santa Catarina, 1936/1940: a contribuição do Curso de Arquitetura da ENBA. In: Anais... do 9º seminário DOCOMOMO Brasil: interdisciplinaridade e experiências em documentação e preservação do patrimônio recente. Brasília, junho 2011. www.docomomobsb.org. Acesso em 20 de agosto de 2020.

BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. São Paulo, Editora Perspectiva, 1981.

CAMPOS, Ernesto de Souza. História e Evolução dos Hospitais. Ministério da Saúde, Rio de Janeiro, 1944. Reedição de 1965.

CAMPOS, Márcio Correia. Niemeyer em Berlim: idas e vindas de um edifício habitacional. Arquitextos, Revista eletrônica Vitruvius, São Paulo, abril, 2011. http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/11.131/3846. Acesso em 20 de agosto de 2020.

CYTRYNOWICZ, Monica Musatti. IPH: 60 anos de história. Instituto de Pesquisas Hospitalares Arquiteto Jarbas Karman. São Paulo: Narrativa Um, 2014. (176 p.)

COSTEIRA, Elza. Reflexões sobre a Edificação Hospitalar: um olhar sobre a moderna arquitetura de saúde no Brasil. In BITENCOURT, Fábio e COSTEIRA, Elza (orgs.) Arquitetura e Engenharia Hospitalar: planejamento, projetos e perspectivas. Rio Books, Rio de Janeiro, 2014.

CUNHA, Claudia dos Reis; KODAIRA, Karina Terumi. O legado moderno na cidade contemporânea: restauração e uso. Anais... 8° Seminário DOCOMOMO Brasil- Cidade Moderna e Contemporânea: Síntese e Paradoxo das Artes, 2009.

DOCOMOMO. Homework 2012. DOCOMOMO Registers Typological Documentation. Health - 2012. Em http://docomomo.org.br/old/.  Acesso em 15 de junho de 2020.

GARRO, Jorge Alfonso Astorga e equipe. Projeto Básico de Restauração do Hospital da Lagoa. Documento. Memorial Descritivo do Projeto Básico de Restauração do Hospital da Lagoa. Relatório. Rio de Janeiro, 2010.

GONSALES, Célia Helena Castro. A preservação do patrimônio moderno: Critérios e valores. 2º Seminário DOCOMOMO N-NE, Salvador, 2008.
GOODWIN, Philip. Brazil Builds. Architecture new and old 1652-1942. MoMA, New York, 1943.

IAB, São Paulo. Planejamento de Hospitais. Comissão de Planejamento de Hospitais. São Paulo, Instituto dos Arquitetos do Brasil, Departamento de São Paulo, 1954.

MÓDULO, Revista de Arquitetura e Artes. Rio de Janeiro, vol. 3, Ano III, n.14, Fernando Chinaglia S. A., agosto, 1959.

MOREIRA, Fernando Diniz. Os desafios postos pela conservação da arquitetura moderna. Textos para Discussão: Série Gestão do Restauro. Editora Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada: CECI. Olinda, 2010.

OLIVEIRA, Jaime A. de Araújo e TEIXEIRA, Sonia M. Fleury. (Im) Previdência Social: 60 Anos de História da Previdência no Brasil. Ed. Vozes, ABRASCO, Rio de Janeiro, 1985.

O GLOBO. Artigo. Constrói-se no Jardim Botânico o mais moderno hospital do Brasil. Rio de Janeiro, Acervo do Jornal O Globo, 29 de julho de 1957, p.38. Disponível na internet em http://acervo.oglobo.globo.com .Acesso em 20 de agosto de 2020.

PAPADAKI, Stamo. Oscar Niemeyer: Works in Progress. 2º ed. (1º ed. 1956). Nova York, Reinhold Publishing Corporation.1958, (p.52 a 59).

REVISTA L'Architecture d'Aujourd'hui, vol. 26, nº 62 de 1955.

RIEGL, Alöis. O Culto Moderno dos Monumentos: a sua essência e sua origem. Tradução: Werner Rothschild Davidsohn, Anat Falbel. Editora Perspectiva, São Paulo, 2014.

XAVIER, Alberto, BRITTO, Alfredo e NOBRE, Ana Luiza. Arquitetura Moderna no Rio de Janeiro. RIOARTE, Fundação Vilanova Artigas. Editora PINI, São Paulo, 1991.

ELZA MARIA ALVES COSTEIRA - Arquiteta DSc FAU/UFRJ; especialista em Administração Hospitalar IMS/UERJ; docente de cursos de pós-graduação de Arquitetura Hospitalar; pesquisadora do grupo de pesquisa "Espaço-Saúde" do Proarq/FAU/UFRJ; membro do Leadership Committee do South American Chapter na International Academy for Design and Health; diretora de Relações Institucionais das Américas da Associação Brasileira para o Desenvolvimento do Edifício Hospitalar - ABDEH. ecosteira@uol.com.br

Compartilhe
« voltar
Enviar por e-mail: