Arquitetura hospitalar: o desafio da boa arquitetura

Arquitetura hospitalar: o desafio da boa arquitetura
Marcia Elvira Contreras
Resumo
Os edifícios de saúde possuem critérios e metodologias de design semelhantes aos de qualquer obra de arquitetura, mas incorporam complexidades próprias de sua função, condicionadas por uma série de fatores relacionados à sua finalidade. Eles devem responder ao constante progresso tecnológico, aos avanços científicos no tratamento e cura de doenças, ao equipamento médico e ao mercado farmacêutico.

No entanto, ao mesmo tempo, deveriam gerar boa arquitetura, e é nesse contexto que se torna necessário conhecer o passado para projetar o futuro, o que envolve um processo de reflexão que nos permita resgatar aqueles valores culturais, formais e construtivos que foram bem-sucedidos em obras já realizadas.

Esta apresentação desenvolve um percurso pelos conteúdos conceituais e pelas obras dos principais arquitetos do Movimento Moderno na Argentina, que trabalharam diferentes temáticas de saúde e produziram edifícios de grande qualidade arquitetônica.

Essas obras, realizadas em diferentes províncias da República Argentina, são o resultado de processos de planejamento sanitário realizados no setor público em diferentes momentos históricos, porém dentro do marco das políticas públicas de hierarquização do setor de saúde.
Analisaremos diferentes respostas para considerar aspectos sempre presentes ao projetar um edifício: tipologia, localização geográfica e clima, além de outros temas que são debatidos ao abordar uma obra hospitalar hoje.

Palavras-chave
design, tipologia, geografia, clima, cultura.

Introdução
O movimento moderno na arquitetura argentina se desenvolveu principalmente entre as décadas de 1930 a 1960. Le Corbusier visitou a Argentina em 1929 e suas teorias tiveram peso em uma geração de arquitetos locais influenciados pelas ideias da Bauhaus e pelo próprio Corbusier. Esse movimento buscava romper com os estilos tradicionais e acadêmicos para promover uma arquitetura funcional, racional e austera, que respondesse às necessidades sociais e econômicas do momento.

Como manifesta um artigo da Revista da Sociedade Central de Arquitetos da Argentina: “Existem, na nossa arquitetura dos anos 40 e desde antes, exemplos de resoluções em que o surgimento de novos procedimentos de formalização, digamos o abandono do pseudoclassicismo afrancesado, está associado a uma renovação e purificação que não rejeita modelos modernos, mas os entende como procedimentos de design estreitamente ligados aos locais, aos costumes de seus habitantes e às disponibilidades de materiais e técnicas. Sacriste (Eduardo), Vivanco (Jorge) e Bonet (Antonio) são alguns de seus representantes na Argentina, mas também outros países latino-americanos têm exemplos notáveis; basta citar dois: Luis Barragán, no México, e Oscar Niemeyer, no Brasil.” (MOLINA Y VEDIA, 1995, p. 57)

Embora as propostas da arquitetura internacional tenham gerado uma mudança linguística nos novos projetos na Argentina, é necessário esclarecer alguns pontos que ajudam a explicitar as novas formas, afirmando que não se tratou de substituir uma forma por outra, mas sim de reinterpretar e adaptar essas ideias às necessidades e condições específicas do país. Foram consideradas três vertentes: LOCALIZAÇÃO, USOS e CLIMA, além de uma quarta situação que é uma resolução construtiva minuciosa e ajustada.

Nesse contexto, ao analisar a produção de edifícios voltados para a saúde, destacam-se tanto o arquiteto Wladimiro Costa, pela elaboração teórica e projetual, como o arquiteto Mario Roberto Álvarez, pela qualidade espacial e a resolução construtiva completa.

O primeiro se destaca pela sua atitude frente às propostas do movimento moderno, afirmando: “Não se pode fazer uma genuína arquitetura moderna apenas como fruto de imitações, sem fortes raízes locais” (ACOSTA, 1966, p.15).

No caso do arquiteto Mario Roberto Álvarez, sua atitude precursora o levou a propor uma “arquitetura moderna” dentro do Plano Carrillo (que analisaremos posteriormente). Nesse plano, ele sugere, entre outras coisas, que “o estilo das construções deve ser o colonial”. No entanto, sua obra foi construída com outra linguagem, conseguindo respeitar o lugar e seu povo.

Ambos realizaram suas obras no setor público, um em um governo local e o outro em um nacional, com aspectos políticos relacionados ao atendimento à saúde que determinaram o surgimento de novos programas nos edifícios destinados à saúde.

1 - Plano de Saúde da província de Santa Fé – a saúde como política de Estado
Analisa-se o trabalho do arquiteto Wladimiro Acosta e, em particular, a obra pública em saúde realizada na província de Santa Fé (1938/1939), sendo interessante destacar o marco político-institucional que possibilitou um forte investimento em obras que fizeram parte de um plano pioneiro de reforma sanitária nessa província, antecipando um processo similar implementado, anos depois, em escala nacional.

Os arquitetos e pesquisadores Noemi Adagio e Luis Müller, em seu livro sobre a obra de Wladimiro Acosta, destacam em relação aos antecedentes de sua obra:

A administração do Dr. Manuel María de Iriondo (1937-1943), impulsionada por um momento de prosperidade econômica, caracterizou-se por uma ação de governo voltada para o melhoramento urbano e para a construção de edifícios públicos, especialmente de educação e saúde.

Desde o início da gestão, o Dr. Iriondo insistiu na necessidade de reformar o sistema de saúde da província, particularmente avaliando os requisitos para enfrentar doenças como câncer, lepra, tuberculose e as necessidades de atenção à saúde mental (ADAGIO- MÜLLER, 2009, p.17).

Em 1939, foi criado o Departamento de Saúde Pública da Província para centralizar e unificar todos os serviços de saúde (Lei nº 2.858 de 28 de outubro de 1938), o qual concentrou e coordenou toda a ação sobre a saúde da província.

Em 1940, foi nomeado presidente do Conselho Geral de Saúde o Dr. Abelardo Irigoyen Freyre, que era um defensor da medicina preventiva, concebida como uma responsabilidade exclusiva do Estado, cujos benefícios deveriam alcançar todos os habitantes, independentemente de suas condições econômicas e sociais. Vale destacar outro integrante do órgão, o Dr. David Sevlever, conhecido por seus trabalhos relacionados à associação entre a medicina e a educação física, e que foi quem propôs a contratação do arquiteto W. Acosta.

O novo órgão sustentava que as políticas de saúde deveriam ser organizadas em torno de três eixos:
  1. Renovação na forma de tratamento da loucura,
  2. Doenças contagiosas, e
  3. Saúde preventiva.
A equipe médica encarregou o arquiteto Wladimiro Acosta, que possuía uma experiência prévia consideravelmente rica, sobretudo na investigação teórica, dos projetos mais importantes, encontrando um ambiente adequado para desenvolver suas propostas.

O programa de saúde era inovador para a época e foi conduzido por médicos atualizados nas teorias, tratamentos e tecnologias do momento, com ênfase na prevenção de doenças e no uso de conceitos higienistas para os procedimentos.

O arquiteto Acosta realizou quatro obras nas quais propôs edifícios que respondiam a condições climáticas particulares e a exigências funcionais específicas, sendo elas:
  • Hospital Psiquiátrico – cidade de Santa Fé
  • Leprosário – Rodovia 5 – Campo Crespo
  • Colônia de Alienados em Oliveros – Rodovia 11, km 356 – Oliveros
  • Estação Sanitária Rural
1.1- Wladimiro Acosta
Interessa-nos destacar alguns antecedentes de Wladimiro Acosta, que nasceu em Odesa (atual Ucrânia) em 23 de junho de 1900 e morreu em 1967. Ele pertencia a uma família sefardita e iniciou sua formação na Rússia. Estudou e trabalhou na Itália, onde se formou em Arquitetura e atuou como professor de Design Arquitetônico entre os anos de 1920 e 1921. Em 1922, mudou-se para a Alemanha, onde permaneceu até 1928, ano em que decidiu emigrar para a Argentina, estabelecendo-se em Buenos Aires até sua morte, em 11 de julho de 1967. De 1957 a 1966, foi professor titular de Composição Arquitetônica na Universidade de Buenos Aires, trabalhando também no Uruguai, Chile, Venezuela e Estados Unidos.

Wladimiro Acosta foi um arquiteto com uma sólida formação cultural e uma firme vontade de realizar pesquisas, que, embora aderisse ao conteúdo de uma nova arquitetura (racionalismo), entendia que não deveria ser fruto de uma imitação do vocabulário formal, mas sim de incorporar raízes locais. Essa inquietude o levou, segundo suas próprias palavras, a manifestar:
Restava um terceiro caminho, incerto e aleatório: começar tudo desde o início, estudar a geografia física e humana do lugar, suas características, sua tecnologia, sua técnica de construção, os modos de habitar mais autênticos e encontrar uma arquitetura não só mais ou menos apropriada a este lugar, mas própria dele. Comecei, por uma parte, a estudar atentamente as condições geometeorológicas locais e, por outra, a avançar cuidadosamente nas soluções empíricas contidas nos edifícios do passado colonial, a orientação de seus ambientes e suas primitivas, mas eficazes defesas contra os agentes climáticos adversos, em particular contra o excesso de radiação solar" (ACOSTA, 1976, p.16).

Acosta, através de seus trabalhos teóricos, pesquisas e projetos, manifesta preocupação com a relação entre o homem e o ambiente físico. No livro Vivienda y Clima, ele propõe que o ambiente físico do homem é constituído por habitação + natureza, ou seja, habitação + paisagem + clima, e que a habitação cria um ambiente que deve possuir propriedades benéficas para a saúde, como ar puro e sol.

Ele afirma que a habitação deve ter: a) uma determinada orientação; b) uma conformação arquitetônica específica, incluindo tamanho, forma e modo de funcionamento de suas aberturas; e c) em alguns casos, ser dotada de meios especiais para ‘controle' e 'correção' climática de seus ambientes. Acosta concentrou seus estudos e constituiu uma teoria sobre a adaptação das formas arquitetônicas ao clima, que se concretizou na proposição do Princípio Hélio, desenvolvido em suas obras de habitação, urbanismo e em obras públicas nas áreas de saúde e educação.

Acosta também afirma que é importante considerar a envoltória dos edifícios, composta por paredes, teto e pisos que são termoisolantes e impermeáveis, mas que não deve ser um meio fechado, isolado da natureza. Pelo contrário, deve permitir a insolação, a iluminação e a ventilação, possibilitando a comunicação visual com a paisagem.

A busca por uma conformação arquitetônica que, por si só, forneça de modo ideal os elementos de regulação da temperatura interna e, portanto, conforto térmico foi o motivo que levou o autor ao uso de recursos construtivos que permitissem o aproveitamento do sol e, ao mesmo tempo, evitassem o calor excessivo, regulando a entrada e a exposição do edifício ao sol. Essa proposta de adaptação da forma arquitetônica ao clima foi denominada Princípio Hélio.

Foram realizados vários projetos e construções com essa forma arquitetônica em diferentes zonas e latitudes, adaptando-a a diversos tipos de obras, como casas individuais, coletivas e instituições. Neste trabalho, veremos seu uso em obras de saúde realizadas no âmbito do Plano de Saúde da província de Santa Fé.

O sistema Hélio não é um aditamento auxiliar anexado ao edifício, mas sim uma parte orgânica de sua arquitetura, que confere à obra uma expressão definida. Ele é perfeitamente flexível e se adapta às condições do terreno, à paisagem, à altitude e à latitude, além de variar de acordo com o tema, a magnitude do edifício e o material utilizado.

O dispositivo arquitetônico é constituído por uma laje em forma de viseira, com largura e altura determinadas, resultado de estudos traduzidos em esquemas para representar e verificar as entradas verticais e horizontais do sol no inverno e no verão, seguindo os diagramas elaborados pelo arquiteto.

No livro Vivienda y Clima, é possível acessar os gráficos onde ele analisa as condições de insolação de uma habitação e seus elementos arquitetônicos de controle.

Figura 1- Estudo de aberturas em direção ao oeste, a partir da análise de beirais nessa orientação, chega-se à proposta de cortinas verticais protetoras. (ACOSTA, 2013).

O passar do tempo permitiu que as preocupações que motivaram os arquitetos funcionalistas nacionais pudessem ser entendidas, reinterpretadas e verificadas por meio da utilização de ferramentas atuais, incluindo programas para verificar o aproveitamento solar.
Nesse contexto, segundo o trabalho Edificios Proto-Bioclimáticos en la Argentina, no capítulo 7, afirma-se que:
“Na década de 30, alguns dos mais destacados arquitetos modernos, como Walter Gropius e Le Corbusier, incorporaram em sua produção os estudos de insolação. Ao mesmo tempo, surgiram em diversos países diagramas solares e ferramentas específicas como as Tabelas de Insolação, os diagramas heliotransportadores e o heliódono. Elementos semelhantes foram produzidos na Argentina. Na década de 40, destacam-se os trabalhos de E. De Lorenzi, W. Acosta, J. Servetti Reeves, J. Borgato e E. Tedeschi.

Na década seguinte, F. Beretervide, E. Sacriste, A. Williams e E. Tedeschi produzem obras ou projetos notáveis que podem ser inscritos em uma orientação ‘protobioclimática’. Embora tenham sido realizados com rigor e grande intuição, não recorreram às técnicas de predição do comportamento helioenergético. Em consequência, cabe propor uma avaliação científica de seu desempenho” (SAN JUAN, 2013, p.116).
O trabalho mencionado toma como estudo de caso uma residência projetada por Acosta, descreve a metodologia e o procedimento, com ferramentas atuais de avaliação, a fim de verificar o comportamento da obra.

Figura 2- Maquete virtual e gráficos utilizados no processo de análise do comportamento bioambiental de uma obra de Wladimiro Acosta (SAN JUAN, 2013).


O estudo conclui que, “neste caso, os diagramas de Givoni e Olgyay demonstram que as estratégias implementadas para a zona bioambiental são adequadas. Verifica-se que a insolação responde aos requisitos necessários e denota que foi realizado um cuidadoso estudo desse aspecto. Em síntese, estamos diante de uma obra protobioclimática correta e de valor, levando em consideração os meios instrumentais utilizados” (SAN JUAN, 2013, p.122).

1.2 - Os projetos da província de Santa Fé – o princípio do Sistema Hélio aplicado a instituições públicas
Como mencionado anteriormente, Acosta estudou profundamente a organização da habitação e a elaboração de um dispositivo arquitetônico denominado Sistema Hélio. Estes estudos estão presentes nas obras projetadas em Santa Fé: Hospital Psiquiátrico – Cidade de Santa Fé, Leprosário – Rodovia 5, s/n, Campo Crespo; Colônia de Alienados – Rodovia Prov. nº 11, Oliveros, ambos protótipos de estações de saúde rurais realizados no âmbito do plano de saúde da província de Santa Fé.

Hospital psiquiátrico
Este hospital estava destinado a pacientes agudos e foi construído a poucos quilômetros da cidade de Santa Fé, com capacidade para cem leitos (total para ambos os sexos). Estava destinado a casos agudos com internações curtas; os casos crônicos seriam transferidos para a Colônia de Alienados de Oliveros.


Imagem 3- Planta geral / Imagens de galerias / Pavilhões / Vista parcial norte da administração. Consultórios. Fonte: Vivienda y Clima.

Colônia de Alienados de Oliveros
A Colônia foi concebida como lar e residência para doentes mentais crônicos e como instituto de reabilitação. Foi construída em um terreno de mais de 200 hectares em uma área rural (na época), a 5 km da cidade de Oliveros. A concepção médica, quanto ao tratamento de doentes crônicos, propunha que aquelas pessoas capazes de desenvolver algum tipo de laborterapia pudessem realizar trabalhos que lhes permitissem alguma inserção no meio em que se encontravam. A proposta incluía despertar o interesse dos proprietários de propriedades vizinhas para contar com a colaboração dos pacientes que pudessem prestar algum serviço, sob a supervisão da instituição. É necessário destacar que a proposta era inovadora para a época, pois visava à certa integração ao meio e contrariava o critério de isolamento vigente.




Imagem 4-
Acesso à Colônia / Planta Geral / localização da casa dos funcionários / pavilhões de internação / Capela. Fonte: Wladimiro Acosta, Noemi Adagio, Luis Müller-Vivienda y Clima.,

Em síntese, podemos concluir que Acosta, por meio de sua produção teórica, demonstra ter estudado com perseverança a organização e distribuição da habitação e, a partir dessa perspectiva, concebia as obras apresentadas como “habitações para a saúde”. No entanto, entendia o conceito de “habitação” relacionado ao de “habitat”, conforme manifesta:
“Habitação, no sentido que dou, não é meramente um local para morar, mas todo o espaço e recinto habitável, onde o homem, de forma contínua ou transitória, passa parte do seu tempo, onde vive, onde trabalha, onde descansa. Habitação é tanto seu quarto quanto seu escritório, seu ateliê, sua universidade, sua sala de jantar, seu restaurante, seu teatro ou cinema” (ACOSTA, 1976, p.11).
Com a afirmação anterior, o autor concebe o Hospital Psiquiátrico, o Leprosário e a Colônia de Alienados como espaços onde os pacientes habitavam, em repouso ou em atividade, com terapias diárias e periódicas. Essa forma de pensar a vida do homem, não centrada em uma única atividade, mas com uma concepção mais integral, humaniza os espaços onde transitam pacientes, médicos e pessoal. Podemos afirmar que sua definição dos edifícios de saúde constitui uma descoberta para o momento histórico.

A proposta do Sistema Hélio, resultado de suas pesquisas, complementada com um cuidadoso estudo sobre a geografia e os materiais de cada uma das zonas onde erguia suas obras, expressa uma nova concepção da linguagem arquitetônica que acompanha a inovação nos tratamentos médicos.

A qualidade dos edifícios que propunha mostra sua adesão a uma “nova arquitetura”, que, segundo suas palavras:
“...é, em essência, a arte de criar espaços altamente habitáveis, cujo destino é dar acolhimento e abrigo à vida do homem, beneficiário final de seu trabalho. O reconhecimento de tão óbvia e elementar verdade não foi um processo simples e fácil. Exigiu, ao contrário, anos de luta e esclarecimento.” (ACOSTA, 1976, p.11)
Acosta resolveu os projetos encomendados a partir de uma interpretação integral: cura, prevenção, educação e vida em comunidade. Sua forma de conceber a arquitetura e seu aporte inovador em uma etapa de mudança fazem com que seja necessário destacar e conhecer suas propostas ao pensar em um edifício.

2 - O Planejamento da saúde pelo Estado Nacional

2.1 - Plano Carrillo
Posteriormente à realização do Plano de Saúde da província de Santa Fé (1937-1943), foi realizado um ambicioso processo de planejamento e execução de obras em âmbito nacional, denominado Plano Carrillo, implementado pelo Estado Nacional durante o governo peronista de 1943 a 1955.

O governo peronista se caracterizou por um forte investimento em questões comunitárias, resultado da emergência de novos atores sociais, devido à incorporação de um número significativo de pessoas ao mercado de trabalho e ao reconhecimento dos direitos sociais aos setores populares mais necessitados. Isso propiciou a inclusão de novos temas de arquitetura, como colônias de férias, hotéis de turismo, hospitais, policlínicas, centros de saúde, lar escola, lares de idosos, cidades infantis e estudantis etc., que sinalizavam a sensibilidade social do governo e a vontade de responder às necessidades.

Nesse contexto, em 1946, foi criado o Ministério da Saúde, e o Dr. Ramón Carrillo foi designado para liderá-lo. Durante sua gestão (1945 a 1951), Carrillo realizou uma verdadeira revolução na atenção à saúde, que resultou na duplicação das camas hospitalares, passando de 66.300, em 1946, para 134 mil, em 1954. Foram criados 230 estabelecimentos de internação, 50 institutos especializados, 3 mil dispensários e centros de saúde distribuídos por todo o país, além da criação do EMESTA (Especialidades Médicas do Estado), o primeiro laboratório nacional de medicamentos gerido pelo Estado.

O Plano Carrillo estabelece o planejamento como horizonte e modelo de ação, criando uma relação entre saúde, arquitetura e gestão. O mentor desse processo afirma na conferência proferida na sede da Liga pelos Direitos do Trabalhador, em 1949:
“Esta conferência poderia servir de introdução aos estudos de arquitetura hospitalar; a nova disciplina foi incorporada ao programa de estudos da Faculdade de Arquitetura, disciplina que é correlativa a uma matéria análoga que também foi criada na Faculdade de Medicina: a de Organização Sanitária e Planejamento Hospitalar.

A arquitetura hospitalar, em síntese, apresenta certos princípios aos arquitetos. Os mesmos princípios são apresentados aos médicos pelo Planejamento Sanitário. Dois objetivos distintos, mas tão intimamente unidos que, em conjunto, constituem uma única matéria de especialização” (CARRILLO, 1974, p.48).
Essa preocupação, que o leva a propor a necessidade de uma formação específica para participar do planejamento do sistema de saúde, centrada na gestão dos recursos médicos, físicos e humanos, surge de uma concepção que sintetiza assim:
“O que é a arquitetura? É a arte e a ciência de construir. O que é a medicina? É a arte e a ciência de curar. Ambas, arquitetura e medicina, nascem como necessidades, evoluem como arte e se organizam como ciências” (CARRILLO, 1974, p.21).
A política de saúde proposta por Carrillo foi realmente revolucionária, pois normatizou e executou as ações com base nos seguintes princípios:
  • Todos os homens têm igual direito à vida e à saúde.
  • Não pode haver política sanitária sem política social.
  • As conquistas da técnica médica são inúteis se não puderem chegar ao povo por meio de dispositivos adequados.
Essa fundamentação faz com que Carrillo enfatize a medicina preventiva, já que, segundo sua concepção, ela deve se ocupar da saúde e dos saudáveis, pois seu objetivo não é a doença e os doentes, mas evitar a enfermidade.

Nesse contexto, o dispositivo paradigmático foi o centro de saúde, cujo programa estava alinhado com a política de saúde implementada. Ele foi concebido como uma célula básica regional, que desenvolve uma ação preventiva – exame anual obrigatório, vacinação periódica e organizada, elaboração de estatísticas; uma ação social – por meio de visitadores que localizam focos de insalubridade humana e levam até eles a ação do Centro; e uma ação curativa – que abrange o diagnóstico e o tratamento de pacientes ambulatoriais.

Para cumprir esse programa, os Centros contam com, além dos serviços específicos de consultórios, laboratórios, farmácia, assistência social, estatística e arquivos, auditório, jardim de infância, lactário, cozinha de leite, banheiros públicos, refeitórios para o pessoal (com possibilidade de estendê-los à comunidade) e residências para funcionários, estas com funcionamento próprio que não interferem no movimento dos Centros.

Carrillo, em seu livro Teoria do Hospital, apresenta, com uma visão racional e moderna da arquitetura hospitalar, que os hospitais não são edifícios estáticos, mas dinâmicos. Ele incorpora a necessidade de pensar na evolução e no crescimento, flexibilidade, diferenciação de circulações e setores funcionais.

A obra constitui um verdadeiro compêndio sobre edifícios hospitalares, sem deixar de lado nenhum aspecto, desde a proposta tipológica até o estudo dos custos de construção, habilitação e funcionamento.

Imagem 5- Evolução dos diagramas para hospitais segundo a quantidade de camas e diversidade de tipologia. Fonte: Teoría del Hospital – Obras Completas, Ramon Carrillo.

Em seu esforço para prever tudo relacionado ao edifício hospitalar, o ministro da Saúde também se refere ao “estilo das construções”. A título de exemplo, basta considerar as especificações explícitas adotadas para as construções hospitalares. Estava previsto que “o estilo de nossa construção hospitalar rural será o colonial, estilo espanhol ou tipo rural, com telhados em duas águas, com pérgulas ou com galerias externas e internas para qualquer clima e localização geográfica. As galerias perimetrais são obrigatórias.”

Afirma-se que “a pérgula, o telhado de telhas, as paredes brancas, as linhas sóbrias são características inconfundíveis deixadas pelo colonial espanhol, já adaptadas ao estilo criollo”. No entanto, em outro artigo, expressa que “os senhores arquitetos terão essas diretrizes gerais, podendo em cada caso sugerir todas as reformas ou mudanças de estilo que acharem convenientes adotar” (CARRILLO, 1974, p.500).

2.2 - As obras dos Centros Sanitários do Plano Carrillo – Mario Roberto Álvarez
Em 1948, o Ministério da Saúde da Nação convocou um concurso de projetos e preços para a construção de Centros Sanitários nas províncias de Tucumán, Santiago del Estero, Salta, Jujuy, Corrientes e Catamarca. A condição era que o estilo fosse colonial, com telhados de telhas e colunas salomônicas. O concurso foi vencido pelos arquitetos Mario Roberto Álvarez e Macedonio Oscar Ruiz. Eles propuseram projetos com uma linguagem própria do movimento moderno, gerando uma arquitetura simples e econômica que utilizava materiais locais e uma clara estratégia climática aplicada de acordo com a localização da obra.

Na sua proposta, MRA soube interpretar a preocupação do ministro, que expressava que a proposta arquitetônica deveria “coincidir com nossa idiossincrasia, com nosso modo de ser, com nosso conceito”. Ele reinterpretou, com uma linguagem formal própria do racionalismo, os dispositivos espaciais característicos das construções do país, reformulando em cada região as diretrizes do “estilo colonial”, respeitando os pátios, os jardins, as galerias, os telhados de telhas de suaves pendentes e de águas simples, com colunas finas substituindo as ordens robustas de colunas ou de pilares de alvenaria colonial.

A tarefa do arquiteto gerou uma obra, realizada entre 1948 e 1951, de grande magnitude (60 mil m²) e qualidade, que constitui uma contribuição do Movimento Moderno pouco difundida em nosso país.

2.3 - As obras: Centro Sanitário na capital de Catamarca
O Centro está localizado na capital da província de Catamarca, no noroeste da Argentina, e possui 4.800 m². De acordo com o Plano Carrillo, funcionava como célula básica regional, desenvolvendo a ação preventiva, a ação social e a ação curativa. Para cumprir esses objetivos, o programa arquitetônico incluía áreas para consultórios externos, laboratório, lactário, escritórios para medicina preventiva, auditório como serviço à comunidade e residências para funcionários.

Imagem 6- Plano geral. Fonte: Revista S.C.A. Arq. Juan Molina y Vedia.

Imagens 7- Fotos feitas pela autora


A obra conta com edifícios que desempenham diferentes funções, articulados por meio de amplas galerias semicobertas que constituem espaços intermediários entre o interior e o exterior. Essas galerias permitem organizar o conjunto e melhorar a qualidade ambiental, considerando que o clima da região é quente e árido.

A definição por parte das autoridades de considerar os Centros como edifícios, tanto para saudáveis quanto para doentes, possibilita a proposta de um edifício permeável à vida das cidades, que contribui para enriquecer o cotidiano da comunidade, dado que desenvolve atividades de prevenção e recreação ao propor um auditório de uso público. Esses aspectos do programa resultam em edifícios com uma imagem distante daquela normalmente atribuída a um hospital: a de prisão atrás de uma muralha.

Nesse caso, a modernidade da proposta programática contribui para a qualidade da solução apresentada, típica da arquitetura do Movimento Moderno, sendo ambos os aspectos uma inovação para a época.

2.4 - Centro Sanitário na capital de Tucumán
O edifício de 4.640 m² está localizado na capital da província de Tucumán, no noroeste do país, e possui um clima subtropical com verões muito quentes e invernos amenos. Na região de planície, há uma estação seca acentuada e temperaturas muito elevadas no verão, com uma vegetação bastante densa.


Imagens 8-
Galeria de acesso ao auditório / vista exterior do hall / pátio interior com vegetação nativa. Fonte: Revista S.C.A, nº 173.

A preocupação em responder às questões funcionais não impede a realização de uma proposta com a nova linguagem, expressa em amplas galerias (as pérgulas da “arquitetura colonial”), que constituem um espaço de transição entre o exterior com altas temperaturas e o interior; nos pátios internos, que permitem espaços contidos e possibilitam ventilação cruzada; e na presença de galerias perimetrais nos diferentes blocos, respeitando a exigência do Ministério da Saúde.

Trata-se de edifícios projetados com a nova linguagem, que propõe um estilo sóbrio e despojado de recursos sofisticados. Essa síntese é fruto do conhecimento do clima da região, da sólida formação técnica, demonstrada no design dos detalhes construtivos, e da utilização de materiais locais. Esses aspectos, juntamente com uma solução funcional adequada, resultam em edifícios de grande qualidade.

Conclusão
Gostaríamos de destacar que os dois processos analisados tiveram a saúde como política de Estado e foram realizados por governos de diferentes orientações ideológicas: no caso da província de Santa Fe, durante a gestão do Dr. Manuel María de Iriondo (1937-1943), com uma orientação conservadora; e posteriormente durante a presidência da República Argentina do Gen. Juan Domingo Perón, com a gestão do Dr. Ramón Carrillo como primeiro ministro da Saúde da Nação (1946-1951), com uma orientação ideológica progressista.

No entanto, podemos destacar que, como programas políticos de realizações estatais massivas com um forte conteúdo social e coletivo, esses processos possibilitaram a preparação de arquitetos como Wladimiro Acosta e Mario Roberto Álvarez, dispostos a enfrentar encargos que exigem eficácia, rapidez, sistematização e qualidade formal.

Nesse sentido, podemos observar que, nos momentos de coincidência entre encargos e objetivos estratégicos do poder político, as regras e as necessidades imperiosas da época constituíram um terreno indispensável, que possibilitou uma forte e saudável resposta arquitetônica, e que se incorporou aos precedentes e foi necessário conhecer para se avançar na consolidação de uma arquitetura sustentável no campo cultural nacional.

A obra hospitalar não deve ser uma resposta acrítica a um programa funcional que apenas contemple a organização de unidades de produção (os diferentes serviços), mas sim apoiada em uma concepção sistêmica, tanto no funcional quanto no espacial, criticando as construções teóricas, como propõe o arquiteto Juan Molina y Vedia:

“Por isso, propomos ‘ver e tocar’ os edifícios dos quais queremos falar, para poder continuar projetando e construindo outros. Teorizar, mas não no vazio, e sim a partir das obras que se veem, se tocam, se vivem. Então, busquemos construir uma trajetória que sem dúvida nos pareça rica para trabalhar no tema.” (MOLINA y VEDIA, 1988, p. 14)

Antes de iniciar um novo projeto, é recomendável que se conheça, estude e analise o acervo da produção arquitetônica precedente, a fim de identificar aquelas obras que servem como exemplos de boa arquitetura. Nesse sentido, as obras de saúde citadas neste artigo devem ser consideradas, tanto pelas soluções relacionadas à localização, seus usos, o clima e por uma resolução que contemplou as diferentes regiões de um país extenso e complexo como a Argentina.

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