Resumo
O estudo teve por objetivo principal estabelecer a relação entre a disseminação da Covid-19, no Brasil, e as rodovias federais. A sintaxe espacial, campo de estudo do urbanismo, foi usada para analisar o espaço e sua relação com as pessoas, sendo o nível de integração das vias o fator dominante. Nesta pesquisa, o nível de integração das rodovias foi aliado ao mapa de densidade de infectados com o vírus, assim permitindo analisar a relação entre os dois. O desenvolvimento deste trabalho se deu pelo estudo de caso ao longo dos meses de janeiro, fevereiro e março do ano de 2020, no Brasil. O estudo foi feito de forma horizontal, pois apenas a repetição dos fatos poderia confirmar ou não um padrão de comportamento. O número de infectados e as características espaciais foram considerados como dados primários, e a sobreposição destes permitiu estabelecer a relação entre as partes. O estudo constatou que as regiões mais atingidas foram as que contam com rodovias mais integradas. As diretrizes propostas visam à otimização dos recursos humanos e econômicos.
Palavras-chave:
Sintaxe espacial; Covid-19; estratégias contra a pandemia; rodovias federais; isolamento preventivo.
Introdução
O primeiro semestre do ano de 2020 estará para sempre marcado na história: a primeira pandemia da era digital. Nunca foi dada tanta importância à aplicação do georreferenciamento e tecnologia, que permitem saber a exata localização de um evento, tendo todo seu esforço voltado para a Covid-19. Saber onde tudo começou e como é o seu padrão de dispersão são notícias frequentes nos jornais. Talvez a maior dúvida seja como se pode eliminar o coronavírus, e aqui cabe ressaltar que o esforço é multidisciplinar, mas, independentemente do campo de estudo, existem duas abordagens principais: a prevenção e o combate.
O combate não tem sido feito apenas por aqueles que estão no dia a dia lidando com o problema na linha de frente, sendo necessário ressaltar os atos heroicos dos profissionais de saúde, mas também por aqueles que têm feito sua contribuição de dentro de seus laboratórios, por meio de pesquisas que permitem o melhor entendimento deste fenômeno e a compreensão da doença. A situação que o mundo passa é a de guerra, sendo que a vitória só é possível quando o inimigo é entendido. A busca por compreender o inimigo tem incluído profissionais das ciências biológicas e da saúde, que buscam entender como o vírus funciona, qual o seu ciclo de vida e outras frentes; matemáticos e estatísticos, que buscam formar modelos que possam prever o comportamento e a dispersão do vírus; psicólogos, psiquiatras e sociólogos, que buscam entender os efeitos deste isolamento social na psique humana; e tantos outros profissionais. Geólogos e urbanistas têm estudado os dados georreferenciados colhidos que permitem o estudo do fenômeno que, aliados a outros campos de estudo, possibilitam entender padrões que possam ajudar na prevenção da disseminação dessa doença.
A Teoria da Sintaxe Espacial foi proposta por Bill Hillier e seus colaboradores da Universidade de Londres, no início da década de 1980 (SABOYA, 2007). E, embora ainda seja considerada algo novo cientificamente, é usada com grande eficácia como ferramenta projetual de novas cidades e no entendimento de padrões comportamentais. Este ramo do urbanismo estabelece que um fenômeno apenas ocorrerá se for possível que o agente possa chegar ao seu destino, criando assim um acontecimento. O conceito de isolamento social¹, ou até mesmo o lockdown², possui o mesmo princípio: uma vez que as pessoas parem de interagir, o vírus não terá como se espalhar, pois o meio de transmissão foi eliminado.
Foi possível determinar onde tudo começou, Wuhan, China. Mas, hoje, muito mais do que “por onde começou”, a sociedade deseja saber como ele se espalha e como se pode combater a sua disseminação. A busca pela vacina ou pelo medicamento que venha a combater esse vírus é de grande ajuda, mas é uma solução somente para os problemas atuais. Um novo vírus pode não ser vencido pela vacina de combate ao coronavírus ou pelo medicamento para a Covid-19, mas explorará as mesmas fraquezas encontradas por este vírus, se alastrando com a mesma facilidade. Apesar da importância de uma solução para a atual pandemia, as pesquisas também devem analisar os fatores que levaram ao êxito da disseminação da Covid-19. Este trabalho pretende contribuir com o planejamento futuro para evitar a situação vivida atualmente
Desenvolvimento
O entendimento do padrão de dispersão da doença permitirá o conhecimento e a implementação de práticas que evitem futuras pandemias. A sintaxe espacial se dedica ao estudo de fenômenos que ocorrem devido ao deslocamento pelas vias terrestres, permitindo que fatores relacionados à configuração possam ser medidos matematicamente e visualizados de forma clara, objetiva e impessoal (SIQUEIRA, 2020). Acerca do uso da sintaxe e o mapa axial, Siqueira (2020, p. 36, grifos do autor) diz:
Ao olharmos o sistema viário, percebemos que algumas ruas se cruzam; nesta região onde as vias se cruzam chamamos de "nó". A teoria dos nós data do final do séc. XIX (ROSA 2012, p. 80) e estuda a topologia, ou seja, estuda a estrutura dos objetos sem se preocupar com o tamanho, formato ou geometria. A partir destas informações, podemos então criar um mapa que codifica o número de nós de cada via. Este mapa nos ajuda a entender com quantas outras ruas ela interage. Reiterando o que disse Saboya (2007) acerca da Sintaxe Espacial e a integração das vias: "das medidas possíveis de análise sintática, a principal é a chamada integração". Ela é útil na previsão de fluxos de pedestres e veículos e no entendimento da lógica de localização de usos urbanos e dos encontros sociais.
O estudo relacionou o mapa criado pelo UFRGS com o mapa axial³ das rodovias federais, onde a integração foi avaliada para determinar essa relação. O mapa axial foi gerado a partir do desenho das rodovias (Mapa 1) no software AutoCad, e sua análise, no software Depthmap. O critério adotado foi observar de maneira visual a relação entre os dois mapas, procurando situações em que os fatos se repetiam e pudessem estabelecer um padrão. O vírus se comporta de forma dinâmica, assim, o estudo avaliou os mapas mencionados também de forma dinâmica, avaliando-se a dispersão por quinzena. Apenas o mês de fevereiro de 2020 foi avaliado como um todo, por não ter sido identificada alteração relevante neste período.
Mapa 1 . Rodovias Federais do Brasil. Fonte: BRASILMINFRA (2020).
O Mapa 3 retrata a primeira quinzena de março de 2020, em que é notória a mudança, tanto pelo mapa quanto pelo Gráfico 1. Neste período, apenas as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro tiveram um registro significativo, apresentando 64 e 23 casos respectivamente. Foi a partir deste momento, no qual o vírus começou a se fazer notório no Brasil, que sua difusão entre as cidades não ocorreu exclusivamente por via aérea, mas se deu também por meio terrestre.
A segunda quinzena de março, mostrada pelo Mapa 4, evidencia a evolução de forma mais clara, possibilitando até mesmo a criação de vetores que apontaram a direção de disseminação da Covid-19.
Ainda se tem o fato de que, dentre as capitais, as cidades turísticas tiveram números de contaminados mais expressivos. É preciso lembrar que o vírus possui um período de incubação de até 14 dias (BRASIL.MS.FIOCRUZ, 2020). Assim, o Carnaval e o período de férias letivas deste ano foram de grande contribuição para a propagação da Covid-19. Este fato pode ter demonstrado uma tendência: a disseminação inicial foi principalmente ocasionada pelo turismo. Além do turismo, as regiões de grandes indústrias e produção agrícola também estimulam o
O mês de março também marcou o início do isolamento social em quase todos os estados da federação, como mostra o Quadro 2(dados retirados dos Decretos de cada estado no ano de 2020):
O isolamento social marcou um momento em que o trânsito de pessoas nas cidades e entre as cidades foi reduzido ao mínimo necessário. Assim, os próximos casos neste estudo apresentaram pouca ou nenhuma influência de pessoas fora de suas cidades ou estados, havendo a participação predominante da população local de cada cidade.
Acre | 16/03/2020 | Maranhão | 30/03/2020 | Rio de Janeiro | 11/03/2020 |
Alagoas | 18/03/2020 | Mato Grosso | 31/03/2020 | Rio Grande do Norte | 13/03/2020 |
Amapá | 17/03/2020 | Mato Grosso do Sul | 16/03/2020 | Rio Grande do Sul | 01/04/2020 |
Amazonas | 23/03/2020 | Minas Gerais | 19/03/2020 | Rondônia | 17/03/2020 |
Bahia | 16/03/2020 | Pará | 18/03/2020 | Roraima | 27/03/2020 |
Ceará | 19/03/2020 | Paraná | 16/03/2020 | Santa Catarina | 23/03/2020 |
Distrito Federal | 19/03/2020 | Paraíba | 17/03/2020 | São Paulo | 13/03/2020 |
Espírito Santo | 13/03/2020 | Pernambuco | 14/03/2020 | Sergipe | 16/03/2020 |
Goiás | 13/03/2020 | Piauí | 23/03/2020 | Tocantins | 21/04/2020 |
Quadro 2 . Data do início do isolamento social por unidade da Federação. Fonte: Autor (2020), com base em Decretos dos estados e territórios.
Figura 1 . Progressão da contaminação por Covid-19. Autor (2020). Fonte: BBC (2020).
O Mapa 5 ainda mostra que Manaus, por estar isolada das demais cidades infectadas, em um estudo futuro, seria a melhor cidade para compreender o comportamento do vírus. Isso se deve ao fato de sua população possuir pouco contato com as demais regiões, havendo pouca influência externa e podendo ser considerada um sistema isolado. Este fato anula o que é conhecido como efeito de borda.
Mapa 6 . Mapa de integração das rodovias brasileiras x contaminação por Covid-19 - 16/4/2020 a 30/4/2020. Fonte: Autor (2020).
A velocidade com que a Covid-19 se espalhou pelo mundo mostrou a fragilidade do sistema de saúde mundial, nivelando tanto os países mais abastados quanto os mais necessitados. A pandemia vem provocando não só uma crise na saúde, mas apresenta graves efeitos colaterais, sobretudo na economia. A verdade é que, em uma pandemia, pouco se pode fazer para mudar a situação mundial, mas existem diretrizes que podem ser implementadas nas fronteiras para preservar a nação.
Até 18 de maio de 2020, o Brasil possuía um orçamento, oriundo do Ministério da Saúde, destinado ao combate da Covid-19 de R$ 24.167.950.734,00 (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO, 2020), sendo que apenas cerca de 35% deste montante foi gasto até a data mencionada. O orçamento anual para a Saúde, previsto em 2019, para o ano de 2020, era de R$ 19,3 bilhões (REVISTA EXAME, 2019), ou seja, ainda nem se havia chegado à metade do ano de 2020 e o orçamento anual previsto já havia sido ultrapassado. A pandemia da Covid-19 provocou vários efeitos, que já podem ser sentidos, sendo o econômico e o desabastecimento os mais perceptíveis, mas muito ainda está por vir.
O trabalho parte do pressuposto de que se deve, sim, fazer o possível para conter os avanços do vírus, protegendo a vida ao máximo. Mas o fato é que a situação vivida é de guerra. O planejamento é realizado reativamente, sempre após a movimentação do adversário, Uma vez terminada a batalha, com certeza, haverá vários aprendizados. Certamente, esta não será a última pandemia vivida no Brasil, e este foi o ponto central deste estudo: traçar estratégias de contenção para uma possível nova epidemia, não apenas para preservar a vida, mas também para que cause menos impactos em nosso país, sobretudo na economia. Apesar de o foco ter sido encontrar soluções para futuras pandemias, este modelo não se limita apenas a esta aplicação. As soluções aqui propostas podem ser aplicadas em campanhas de vacinação, epidemias, bem como em outras além da área da saúde. Os pontos de maior integração apontam os lugares onde o controle de fluxo pode ser mais efetivo.
O estudo mostrou que as rodovias e os aeroportos foram os principais difusores do vírus. Com isto em mente, cabem algumas observações quanto às estratégias tomadas. O isolamento social foi necessário, mas possui uma ótica de dentro para fora. Neste estudo, observou-se que essa visão, em que a população foi confinada às suas casas, tende a ser parcial, e não considera o todo. Em um estágio inicial, o oposto tende a ser mais eficaz sob o ponto de vista da sintaxe espacial, como mostra a Figura 2, adotando uma visão macro da situação.
Figura 2 . Isolamento social x Controle de fluxos. Fonte: Autor (2020).
A sugestão é a criação de setores de triagem em aeroportos, principalmente os que recebem e oferecem voos internacionais, sobretudo em cidades turísticas, com testes rápidos. No caso de contaminação, dentro do próprio aeroporto, deveria haver um pequeno hospital com capacidade para internação de pacientes, assim, o passageiro poderia receber cuidados médicos até o restabelecimento de sua saúde. O estudo mostrou que usar a sintaxe espacial, sobretudo o estudo da integração das vias, é benéfico para traçar estratégias sobre onde colocar pontos de controle. Que fique claro que o intento desta estratégia não é o fechamento das fronteiras, mas o exame dos que ali passarem, de forma a garantir a saúde. A análise do mapa axial e da integração das vias mostrou que a BR-101, a BR-116, a BR-376 e as saídas das cidades de Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre são primordiais para o controle de uma pandemia. No caso das rodovias e cidades, poderiam ser construídas pequenas unidades de saúde para os contaminados, perto dos postos de fiscalização da Polícia Rodoviária Federal, ou até mesmo haver carretas preparadas para este serviço, que poderiam se deslocar conforme a necessidade. Essas estratégias seriam muito mais eficazes e menos impactantes do ponto de vista social, possibilitando um impacto econômico muito menor.
Este estudo levou em conta apenas as rodovias federais, mas o seu aprofundamento, incluindo as estaduais e aliando o nível de integração das vias com dados estatísticos do fluxo de pessoas, refinaria ainda mais as diretrizes aqui propostas. O intuito deste trabalho foi sugerir possíveis diretrizes a serem tomadas em uma futura pandemia, otimizando os recursos humanos e financeiros. Devido à grande disseminação do vírus no Brasil, os pontos aqui mostrados seriam de pouca eficácia no momento presente, devendo ser implementados de forma preventiva.
Referências
BBC. Contágio por coronavírus: o que é o viés matemático que dificulta o combate à pandemia de Covid-19, 19 de ago. 2020, Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-53822007. Acesso em 18 out., 2021.