Resumo
Neste artigo, apresentamos o Hospital da Lagoa, no Rio de Janeiro, objetivando ressaltar sua arquitetura como representante do patrimônio moderno e hospitalar brasileiro. Projetado por Oscar Niemeyer e Hélio Uchôa, este hospital se configurou um modelo de atendimento de sua época, evidenciando as formas de adoecimento, tratamento e cura. Com uma arquitetura capaz de absorver novas tecnologias, significou uma abordagem pioneira de conforto ambiental e humanização, incorporando painéis de azulejos de Athos Bulcão e jardins de Burle Marx. Observando suas características como lugar de memória da saúde e da arquitetura moderna, usaremos diretrizes indicadas por Gonsales (2008), tomando três dimensões interdependentes para análise: a representação da modernidade, a conservação das características originais e a autenticidade na sua preservação, visando à sua continuidade de uso e conservação.
Palavras-chave
arquitetura moderna, arquitetura hospitalar, memória da saúde.
Introdução
Ao nos depararmos com as questões que envolvem a preservação de obras arquitetônicas do movimento moderno brasileiro, encontramos importante acervo a ser estudado e protegido: trata-se da preservação de prédios hospitalares que enfatizam, ao lado da busca pelo estabelecimento de arquitetura inovadora e afirmativa das premissas do homem moderno, um modelo de atendimento hospitalar à época de sua concepção, evidenciando as formas de adoecimento, tratamento e cura.
Nesse sentido, desenvolvemos neste trabalho uma reflexão a respeito da preservação do Hospital da Lagoa, antigo Hospital Sul América, projetado por Oscar Niemeyer e Hélio Uchôa, o qual teve sua obra concluída em 1959, destacando seu papel como exemplar significativo da memória da arquitetura de saúde brasileira.
O projeto original do hospital repete a parceria dos arquitetos, iniciada no Pavilhão do Parque Ibirapuera, localizado em São Paulo, e utiliza os mesmos cânones modernistas para a sua modelagem e implantação. A obra se desenvolveu por sete anos, até 1959, tendo enfrentado uma série de dificuldades e obstáculos para sua finalização, como afirma Lauro Cavalcanti (1999, p.179). Um dos entraves à implantação do hospital era a ocupação do terreno escolhido para a sua construção por uma favela de cerca de mil moradores, conhecida como Favela da Hípica, que acabou sendo removida do local, assim como outras que havia às margens da Lagoa.
Outra dificuldade que acabou causando atrasos na construção do hospital foi a natureza do terreno, pantanoso e de difícil estabilização, como costuma ser todo o entorno da Lagoa. As primeiras sondagens exigiram cuidados redobrados na confecção do projeto estrutural, que contava, inclusive, com a construção de um pavimento em subsolo.
O prédio do Hospital Sul América da Fundação Larragoiti foi adquirido em 1962 pelo antigo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários (IAPB), por autorização do presidente João Goulart. Nesta ocasião, passou a chamar-se Hospital dos Bancários, integrando o suporte de atenção à saúde, promovido pelo sindicato da classe.
Em novembro de 1966, "todos os institutos que atendiam aos trabalhadores do setor privado foram unificados no Instituto Nacional de Previdência Social - INPS" (OLIVEIRA, 1985). O Hospital, posteriormente, foi integrado à rede do extinto Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), que depois teve a sua rede de assistência à saúde transferida para a gestão do Ministério da Saúde. Foi tombado em 1992 pelo Instituto Estadual de Patrimônio Artístico e Cultural - INEPAC. Posteriormente, atualizou seu nome para Hospital da Lagoa ou Hospital Federal da Lagoa, a partir de 2005, quando voltou à gestão federal após pouco mais de cinco anos de administração municipal, de 1999 a 2005.
Nesta reflexão, pretendemos, ao observar o estado em que se encontra atualmente o Hospital da Lagoa e as ações para a conservação de suas características modernas, colaborar para um melhor entendimento das questões que envolvem a preservação das edificações modernas da saúde, frente às necessárias e constantes atualizações tecnológicas de seus equipamentos prediais para atender às diretrizes de atenção à saúde da atualidade e do futuro. A partir da adoção constante de novos procedimentos de diagnóstico e de terapia, que observamos no desenvolvimento da prática médica, acreditamos ser fundamental a análise de como as premissas construtivas do movimento moderno podem ter facilitado a atualização e as reformas necessárias que impactaram este importante projeto ao longo de sua vida.
A representação da modernidade
A primeira dimensão para a análise da importância da arquitetura do Hospital da Lagoa, como um exemplar do movimento moderno, passível de preservação e conservação, é o seu grau de representação da modernidade arquitetônica, ou seja, das características que o tornaram um modelo de arquitetura moderna para a saúde.
Nesse sentido, não se pode negar, antes de tudo, a importância das visitas ao Brasil do arquiteto franco-suíço Le Corbusier, em 1929 e 1936, que contribuíram para a difusão de princípios modernos da concepção arquitetônica, usados para conceber e construir novos edifícios no Brasil. As ideias inovadoras apresentadas pelo polêmico arquiteto vieram ao encontro da preocupação dos brasileiros, que passaram a empregar concepções formais estéticas e modernas em seus projetos.
O Hospital da Lagoa seguiu essa tendência de inovação na arquitetura brasileira e, além de ter incorporado ao projeto os princípios corbusianos, incluiu novas abordagens no campo da medicina e administração hospitalar, como o preconizado por Ernesto de Souza Campos em seu livro sobre a conformação de hospitais. Como podemos observar em reportagem do Jornal "O Globo", de 29/7/57, o hospital estaria destinado a abrigar o que havia de mais atual em atendimento médico, além dos aspectos modernistas de representação arquitetônica.
Até meados do próximo ano, será inaugurado, nesta capital, o Hospital Sul América, que, com os seus 230 leitos, será um dos mais modernos do mundo, dotado de instalações que representam as mais recentes conquistas, tanto pelo aspecto arquitetônico (projeto de Oscar Niemeyer e Hélio Uchôa) como pelo planejamento dos serviços médicos e administrativos e pela seleção do equipamento. (O GLOBO, 1957, p.38)
Figura 1 . Maquete do Hospital da Lagoa. Fonte: L'Architecture d'aujourd'hui, 1955.
A trajetória de muitos desses profissionais indica uma dedicação à construção de um subcampo específico da atividade, que culminou na realização do curso de Planejamento Hospitalar, realizado pelo IAB de São Paulo, em 1953. (AMORA, 2011, s.p.).
Figura 2 . Foto do 1º Curso de Planejamento de Hospitais, IAB e IPH, fevereiro de 1953. Fonte: Acervo do IPH.
Dentro de suas atividades, abrangeria todo o campo hospitalar do País. Seria o nosso centro de conhecimento e informações hospitalares. Os seus objetivos eram: 1- Realizar pesquisas hospitalares; 2- Dar estreita assistência técnica aos hospitais, de modo a elevar o seu nível e possibilitá-los a combater ou prevenir enfermidades mais eficaz e seguramente; 3- Planificar a coordenação de hospitais; 4- Desenvolver ensino e divulgar conhecimento no campo hospitalar. (IAB, 1954, p.418)
Compreendendo desde a formação do especialista, o planejamento das edificações e instalações, a seleção do equipamento, as normas da organização e de funcionamento, o regime econômico-financeiro, a assistência social, jurídica, cultural, religiosa e recreacional, o estudo da padronização em geral, a legislação específica, a cooperação profissional e associativa ou de classes; abrangendo, desta sorte, todo o domínio da assistência médico-social na comunidade, tanto para doentes, e de todas as classes, como para indigentes, e desajustados sociais, eis, em súmula, todo um programa, que é também a própria finalidade da Divisão de Organização Hospitalar, órgão federal especializado de coordenação, cooperação, orientação e controle das atividades deste setor, no serviço permanente da organização nacional. (CAMPOS, 1944, p.3)
Varrer as doenças por meio de ações preventivas e curativas e promover hábitos considerados higiênicos, controlando os cuidados dos adultos com o corpo e prevenindo as futuras gerações contra enfermidades eram ideias expressas nos princípios da disciplina da higiene, que pareciam implícitas nessa política de saúde pública articulada à ideia de modernização. (AMORA, 2012, p.53)
Uma iniciativa da Instituição Larragoiti que colocará o paiz entre os de mais alto padrão de medicina - pela primeira vez funcionará o Instituto de Diagnóstico para a revisão periódica do organismo humano - a sala de recuperação junto ao centro cirúrgico é uma inovação na moderna técnica hospitalar. (O GLOBO, 1957, p. 38)
Figura 3 . Maquete do Hospital da Lagoa. Fonte: L'Architecture d'Aujourd'hui, 1955.
Figura 4 . Painel dos azulejos do Hospital Sul América e um dos módulos que o compõem. Fonte: ASTORGA, 2010.
A conservação do projeto original
A partir da observação do projeto original do hospital, podemos observar como a instituição pôde conservar a edificação concebida pelos arquitetos Niemeyer e Uchôa, sob algumas premissas estruturantes à época mas que, hoje, não atendem mais às exigências da arquitetura de atenção à saúde, visto a série de normas que impactaram e modificaram significativamente os projetos hospitalares a partir da década de 1990, segundo Célia Gonsales:
A importância histórica dada a um edifício faz parte de um processo de retroalimentação. Os resultados da investigação artística, histórica e científica criam um corpus que indica e sustenta um objeto como "monumento". Os resultados serão mais consistentes à medida que identificam aquela arquitetura ou espaço urbano com uma estrutura ou esquema moderno mais evidente, aqueles objetos que apresentam um real emprego dos apriorismos modernos. (GONSALES, 2008, p.11).
Nossas sociedades ainda não consolidaram a ideia de que a arquitetura moderna é um produto cultural e que deve ser protegida para as futuras gerações. O reconhecimento de um edifício como um bem cultural de uma comunidade leva certo tempo. Muitos edifícios modernos estão sob risco de descaracterização ou demolição, mas muitos deles ainda não tiveram seus valores reconhecidos pela sociedade. (MOREIRA, 2010, p.155)
Figura 5 . Fachada leste do Hospital da Lagoa. Fonte: Rio de Janeiro - NEMS, 2012.
A preservação de parte desse patrimônio, especialmente dos prédios públicos, está sendo garantida pelo uso. Entretanto, o projeto Inventário do Patrimônio Cultural da Saúde pode ser um passo no sentido da utilização do instrumento do inventário como mecanismo de salvaguarda de acordo com a Constituição Federal. Isso se constitui em avanço para o conjunto de ações de preservação nas várias instâncias governamentais. (AGOSTINHO e AMORA, 2009, s.p.)
Mesmo sendo um fato relativamente novo no campo da preservação, já é possível individuar algumas tendências frente às intervenções em arquiteturas relacionadas ao movimento moderno: uma primeira tendência é o restauro (pseudo) filológico, visando recuperar as características originais da obra; uma segunda postura, semelhante por princípio à primeira, seria a reconstrução ao idêntico de obras destruídas; uma terceira possibilidade é a atualização ou mesmo correção tecnológico-construtiva do monumento. (CUNHA e KODAIRA, 2009, p. 8)
Figura 6 . Bloco do Ambulatório, Hospital da Lagoa. Fonte: NEMS, Rio de Janeiro, 2016.
Figura 7 . Jardim do Hospital da Lagoa, de Burle Marx, 1955. Fonte: Adams, MoMA, 1991.
A autenticidade na preservação
Com as assertivas mencionadas acima e observando os conceitos recentemente discutidos sobre a conservação dos monumentos do movimento moderno, especialmente no caso de instituições de saúde, como é o Hospital da Lagoa, nos deparamos com o questionamento sobre a autenticidade nas escolhas das intervenções pelas quais tem passado o edifício. Para ilustrarmos esta discussão, recorremos mais uma vez a Célia Gonsales, que nos fala:
A autenticidade em relação aos monumentos arquitetônicos contém sempre uma ideia de passagem do tempo, do reconhecimento e valorização do objeto através das marcas obtidas em seu devir histórico. A arquitetura moderna em geral não é eficiente sob esse aspecto e isso explica de alguma maneira sua particularidade na abordagem desse tema. (GONSALES, 2008, p.13)
Como temos discutido, é na verificação do equacionamento das questões fundamentais da modernidade em uma obra de arquitetura que pode estar o segredo de sua aceitação pela comunidade e assim sua verdadeira autenticidade. (GONSALES, 2008, p.13)
Figura 8 . Fachada oeste do Hospital da Lagoa. Fonte: Módulo, Revista de Arquitetura e Artes, 1959.
Considerações finais
As edificações de saúde e, em particular, as edificações modernas, como o prédio do Hospital da Lagoa aqui estudado, podem ter sua preservação corroborada pela forte ligação, em seus programas e suas implantações, com as políticas públicas de saúde da época de sua concepção, o que reforça o mencionado neste artigo a respeito das escolhas e do conhecimento da história da edificação além das premissas utilizadas nas intervenções de atualização através do tempo.
É importante destacar que o hospital apresentado neste trabalho foi incluído na lista de obras arquitetônicas a serem protegidas e fichadas para o inventário de edifícios de saúde que compõem o Homework, do Docomomo 2012³, que abordou a arquitetura hospitalar moderna brasileira, seus hospitais e sanatórios.
Mesmo com os inúmeros problemas que cercam a conservação e manutenção do hospital, sua estrutura arquitetônica permanece como um marco da arquitetura moderna e um exemplo da aplicação dos seus conceitos e tipologias na conformação de edifícios complexos, como uma instituição hospitalar, desafiando a passagem do tempo e o impacto das sucessivas incorporações de tecnologia.
Por essas razões, consideramos o Hospital da Lagoa um fundamental testemunho da história e do desenvolvimento articulado da medicina e da arquitetura, evidenciando a chegada de novos tempos e o estabelecimento do pensamento e da imagem do homem moderno. Ademais, recomendamos que a análise das ações de restauro e preservação que enfrentou nos últimos anos seja objeto de estudo e reflexão para apontar diretrizes para a conservação destes e de outros exemplares de memória da saúde do Rio de Janeiro.
Referências
ADAMS, William Howard. Roberto Burle Marx: the unnatural art of the Garden. The Museum of Modern Art, MoMA, New York. Exhibition catalogue: May 23-August 13, 1991. Em https://www.moma.org/documents/moma_catalogue_337_300298266.pdf. Acesso em 14 de maio de 2021.
GOODWIN, Philip. Brazil Builds. Architecture new and old 1652-1942. MoMA, New York, 1943.
PAPADAKI, Stamo. Oscar Niemeyer: Works in Progress. 2º ed. (1º ed. 1956). Nova York, Reinhold Publishing Corporation.1958, (p.52 a 59).
REVISTA L'Architecture d'Aujourd'hui, vol. 26, nº 62 de 1955.
RIEGL, Alöis. O Culto Moderno dos Monumentos: a sua essência e sua origem. Tradução: Werner Rothschild Davidsohn, Anat Falbel. Editora Perspectiva, São Paulo, 2014.