Introdução: o corpo humano percebe o ambiente construído através dos sentidos, e a interpretação desses afeta nosso bem-estar mental e físico. Experiências anteriores e suas interações sensoriais com o meio estão ligadas às emoções e à memória, e se relacionam de forma direta com o conforto dos usuários. Nesse contexto, devem ser consideradas diferenças de compreensão do lugar entre indivíduos neurotípicos e atípicos. Identificar gatilhos de desconforto em pacientes com Transtorno do Processamento Sensorial (TPS) é importante para entender como eles poderiam potencialmente ser aliviados com modificações no espaço. Objetivo: identificar a relevância do ambiente construído no conforto de pacientes de um hospital pediátrico terciário por meio do mapeamento de gatilhos sensoriais relacionados à interação com os espaços acessados na instituição. Materiais e métodos: pesquisa qualitativa, exploratória, descritiva, com abordagem teórica e fenomenológica. O escopo do estudo incluiu a revisão de literatura disponível acerca do tema e análise de respostas das entrevistas com pacientes do hospital entre 2 e 18 anos que apresentaram diagnósticos comumente relacionados ao TPS. Durante as entrevistas, os acompanhantes das crianças foram questionados sobre as reações dos pacientes a diversos estímulos sensoriais. Resultados e discussão: os resultados das entrevistas mostraram que muitas crianças apresentaram desconforto com estímulos sensoriais, reforçando a importância de adaptar ambientes às necessidades individuais dos pacientes. Propõe-se diretrizes para a elaboração de projetos de intervenção na infraestrutura do hospital que respeitem as necessidades dos pacientes com Transtorno de Processamento Sensorial.
Palavras-chave
conforto ambiental, design centrado no usuário, indivíduos neurotípicos, projeto arquitetônico baseado em evidências, experiência do usuário.
Introdução
O Transtorno de Processamento Sensorial (TPS), também chamado de Disfunção da Integração Sensorial, é uma desordem neurológica caracterizada por causar dificuldades na assimilação, no processamento e na resposta às informações sensoriais acerca do ambiente e dos sentidos do corpo do indivíduo – auditivo, tátil, olfativo, gustativo, visual, vestibular e proprioceptivo. O TPS pode estar presente em indivíduos sem qualquer diagnóstico clínico prévio, porém é frequentemente observado em conjunto com outras condições. Estima-se que entre 15% e 20% da população global se encontre dentro do espectro da neurodivergência, com as sensibilidades de processamento sensorial frequentemente impactando sua experiência em espaços públicos (Doylle, 2020, p.112). De acordo com Emmons (2006), os diagnósticos e condições mais comuns relacionados ao Transtorno de Processamento Sensorial, entre outros, são Transtorno do Neurodesenvolvimento (TND), Transtorno do Espectro Autista (TEA), Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDA, TDAH), Síndrome de Down, paralisia cerebral e deficiência intelectual.
As alterações nas respostas aos estímulos sensoriais foram originalmente identificadas pela terapeuta ocupacional norte-americana Anna Jean Ayres, em 1972, quando estudava crianças com dificuldades de aprendizagem. Ayres (1972) associou seus conhecimentos de neurobiologia à observação detalhada do comportamento das crianças e teorizou que o comprometimento do processamento sensorial pode resultar em vários problemas funcionais, nomeando essa condição de disfunção de integração sensorial. Atualmente, essa condição é denominada TPS, terminologia mais adequada, por fazer a diferenciação entre a condição clínica e o processo celular neurofisiológico envolvido (Miller, 2012, apud Machado, 2017, p.93).
Segundo Coolen (2006), as pessoas que sofrem desse transtorno são intimamente afetadas pelo ambiente construído e seu entorno. Tal achado foi reforçado por Barker (2014) em estudo que afirma que o ambiente construído gera um grande impacto na criança com TPS. Tal população pode ser hiper-reativa ou hiporreativa aos estímulos sensoriais, o que pode desencadear sentimentos de angústia, ansiedade, estresse e, ocasionalmente, dor física.
Conforme Dzebic (2014), as propriedades visuais e espaciais de um ambiente interferem diretamente na experiência dos espaços e podem influenciar como o espaço é usado e, assim, incutir a presença e o comportamento de outros indivíduos. O que corrobora a afirmação de Gage (2003) de que as alterações no ambiente têm efeito no cérebro e, por consequência, no comportamento do usuário.
De acordo com Unwin (2003), na assimilação física e experiência real do desenho arquitetônico, a sensação espacial pode ser modificada pelos seguintes elementos: luz, cor, som, temperatura, ar, movimento/ventilação, cheiro, textura, escala e tempo. A manipulação dos referidos elementos de design pode impactar a experiência sensorial do espaço e, possivelmente, alterar a resposta e o comportamento do usuário (Pallasma, 2011).
Devido à diversidade de perfis dos pacientes com TPS, em especial, crianças autistas, os estudos prévios apresentam resultados e conclusões diferentes acerca de orientações de manejo do espaço construído. O que sugere que a definição de como o ambiente deve ser tratado não é muito clara e que o resultado varia de pessoa para pessoa. Diante disso, identifica-se a necessidade de avaliar o perfil de pacientes dentro de um contexto específico, abarcando as necessidades particulares das crianças que utilizam o espaço. Tal demanda é reforçada por Kinnaer (2015), que evidencia a diferença de percepção entre as pessoas e ratifica a necessidade de pesquisas dentro de subgrupos específicos para alcançar resultados mais concretos, visto que os estudos prévios são generalizados.
Diante do exposto, considera-se o seguinte questionamento: qual a relevância do ambiente construído para pacientes de um hospital pediátrico terciário com Transtorno de Processamento Sensorial?
Justificativa
A escolha do tema baseou-se no crescente aumento no número de diagnósticos de transtornos neurológicos, tal como autismo, intimamente vinculado com TPS, o que traz enfoque para a atenção diferenciada que esse tipo de paciente deve receber. Durante a busca de referências bibliográficas, verificou-se que, houve a produção de pesquisas correlacionando o espaço e os usuários com transtornos sensoriais, a fim de definir novas orientações e diretrizes para projetos arquitetônicos. Entretanto, por se tratar de tema recente, ainda há uma lacuna nas publicações que abordem essa relação. Nesse sentido, Paron-Wildes (2005) explica que, para o projeto arquitetônico de ambientes infantis, é importante considerar as necessidades de crianças com distúrbios neurológicos e pensar o espaço como uma experiência. Assim, destaca-se neste estudo a identificação de padrões dos pacientes de maneira a criar diretrizes de projeto de ambientes em que a criança possa se sentir sensorialmente confortável, dado que muitos dos sintomas podem ser manifestações de seu desconforto sensorial (Gopal, 2018). Logo, justifica-se a necessidade de desenvolvimento de estudos como este, em que o enfoque principal se dá nas experiências e percepções dos usuários sobre o ambiente construído.
Objetivo
Identificar a relevância do ambiente construído no conforto de pacientes pediátricos com TPS de hospital pediátrico terciário e mapear gatilhos sensoriais relacionados à interação com os ambientes existentes acessados no hospital.
Metodologia
O local de estudo é o Hospital da Criança de Brasília José Alencar (HCB), um hospital terciário que oferece atendimento integrado e multidisciplinar para pacientes com doenças raras, complexas e crônicas. O estudo foi realizado no HCB durante o período de setembro de 2022 a janeiro de 2024 e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), sob o CAEE nº 60818122.2.0000.0144, parecer consubstanciado nº 5.713.337.
Trata de pesquisa qualitativa exploratória, com análise descritiva e abordagem teórica e fenomenológica cujo objetivo é enfatizar o envolvimento profundo, a interpretação e a integração da teoria com dados empíricos. O estudo foi dividido em duas etapas: (1) entrevista semiestruturada e (2) revisão bibliográfica, para relacionar os achados à literatura.
Para a primeira etapa, a população foi composta por pais e/ou responsáveis (tutores) de crianças atendidas nas diversas especialidades pediátricas do HCB. Foram incluídos na pesquisa os acompanhantes maiores de 18 anos de pacientes de qualquer sexo, maiores de 2 anos e menores de 18 anos, com diagnósticos relacionados ao TPS. Foram excluídos do estudo os acompanhantes menores de 18 anos de pacientes e/ou em suas primeiras visitas ao hospital e/ou com prontuários com informações incompletas em relação ao diagnóstico clínico. Após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), foram conduzidas as entrevistas utilizando como roteiro o Formulário de Entrevista no formato de questões objetivas. Foi criado um diário de bordo físico contendo as anotações sobre os relatos dos acompanhantes, as nuances das respostas e as percepções gerais. Tendo em vista o tema da pesquisa e seus objetivos de investigação, optou-se pelo método qualitativo com análise temática, uma vez que essa abordagem permite adotar uma condução interpretativa dos comportamentos e fenômenos sociais, dando prioridade à significação pessoal dos fenômenos, conforme Braun e Clarke (2006). Por meio da revisão de literatura, foram identificadas as recomendações atuais de projeto e adjacentes no campo, os relatos da população neurodivergente, o contexto histórico relevante e as teorias associadas como conceitos sensibilizadores. Identificados no início do processo de pesquisa, esses conceitos serviram como ponto de partida fundamental e foram instrumentais para orientar uma análise cruzada com os resultados do estudo.
Resultados
Com relação à amostragem, ao todo, foram entrevistados 35 pais e/ou responsáveis de crianças atendidas nas diversas especialidades médicas do HCB de setembro de 2022 a janeiro de 2024. Foram excluídas 3 entrevistas de pacientes que não tinham diagnósticos conclusivos relacionados nos prontuários e analisados os dados coletados de 32 participantes. Destes, 18 (56%) pacientes do sexo masculino e 14 (44%) do sexo feminino. Foram feitas 12 (37,50%) entrevistas com pacientes que visitaram o hospital para uma consulta e outras 20 (62,50%) nas alas de internação. Foram identificadas 9 especialidades de entrada do paciente, sendo estas neurologia (37,50%), oncologia (15,63%), alergia, gastroenterologia e psiquiatria (9,38%), nefrologia e pneumologia (6,25%) e hematologia e cardiologia (3,13%). Dos 32 pacientes, 17 (53,13%) com diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA), 8 (25%) com Síndrome de Down, 4 (12,50%) com Transtorno do Neurodesenvolvimento e 3 (9,38%) com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). A amostra contou com pacientes de 2 a 17 anos, com a frequência de idades conforme Figura 1.
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Figura 1. Histograma de frequências da idade (anos) de pacientes diagnosticados com condições clínicas relacionadas ao TPS, com idade superior a 2 anos, acompanhados no HCB.
Importante ressaltar que não houve diferença significativa da idade em relação ao sexo dos pacientes: sexo masculino, idade mediana (AI) = 6,5 (7,0); feminino, 4,5 (8,0), P (teste U de Mann-Whitney) = 0,419.Para a idade, observa-se, na Tabela 1, que não houve diferença significativa em relação aos diagnósticos dos pacientes estudados e, em relação ao sexo, não houve associação com os gatilhos avaliados neste estudo.
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Tabela 1. Análise de associação da idade em relação à verificação de diagnóstico de pacientes diagnosticados com condições clínicas relacionadas ao TPS, com idade superior a 2 anos, acompanhados no HCB.
No questionário utilizado, os gatilhos de desconforto foram categorizados em tátil, auditivo, visual, olfativo e temperatura, conforme ilustrado na Figura 2. Apesar de não se enquadrar em um sentido específico, a manutenção da rotina foi identificada por 17 tutores como fator crucial para prevenir a agitação. Portanto, foi incluída nos resultados dos gatilhos de desconforto. É compreendido que a organização visual e espacial desempenha papel fundamental na comunicação das atividades futuras, proporcionando previsibilidade para os pacientes que requerem rotinas bem definidas. Ressalta-se que o estímulo que causou o maior desconforto para os usuários foi o tátil (n=21), mencionado por 65,63% dos entrevistados, seguido pelo auditivo (n=18) e visual (n=18).
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Figura 2. Total de apresentação de gatilhos de pacientes diagnosticados com condições clínicas relacionadas ao Transtorno de Processamento Sensorial.
Apenas 2 pacientes (6,25%) não apresentaram nenhum gatilho, enquanto 3 (9,38%) crianças apresentaram desconforto com 1 gatilho, 5 (15,63%) com 2 gatilhos, 9 (28,13%) com 3 gatilhos, 8 (25%) com 4 gatilhos, 4 (12,50%) com 5 gatilhos e apenas 1 (3,13%) paciente apresentou desconforto com os 6 gatilhos relacionados.
Para o gatilho olfativo considerou-se como presente o desconforto com qualquer tipo de aroma, entretanto o mais mencionado pelos acompanhantes foi o cheiro de comida. Para o visual, considerou-se incômodo com luz excessiva e vistas carregadas de estímulos visuais de cores, formatos e movimento de imagens ou pessoas. Para aprofundamento dos dados, os gatilhos táteis e auditivos foram estratificados conforme Figuras 3 e 4.
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Figura 3. Total de relatos de desconforto a partir da estratificação de gatilhos táteis.
Entre os 21 pacientes (65,62%) que identificaram o estímulo tátil como gatilho de desconforto, 16 (76,19%) mencionaram o toque de pessoas, 13 (61,90%) citaram as texturas de brinquedos, alimentos e outros itens cotidianos, 7 (33,33%) relataram incômodo com a pulseira de identificação, que ocasionalmente era colocada no tornozelo da criança quando ela concordava em usá-la, em vez de no pulso. Além disso, 5 (23,81%) mencionaram desconforto devido às texturas dos tecidos utilizados no enxoval (lençóis, cobertores, roupas privativas e toalhas) e 2 (9,52%) pacientes apresentaram intolerância ao contato com cabelo molhado, o que dificultava a higiene pessoal da criança.![](https://iph.org.br/wp-content/uploads/2024/11/Figura-4-N-de-gatilhos-auditivos-300x123.png)
Figura 4. Total de relatos de desconforto a partir da estratificação de gatilhos auditivos.
O estímulo auditivo com o maior impacto sobre os pacientes foi o ruído gerado pela presença de pessoas (14 relatos, correspondendo a 77,78% das respostas), incluindo conversas da equipe assistencial, choros de crianças, sons de outras crianças durante momentos de brincadeira, ruídos de televisão e do painel de chamada. Em segundo lugar (n=13, 72,22%), foram mencionados os sons repetitivos relacionados a equipamentos, sistemas de climatização e exaustão. Os ruídos súbitos e impactantes, como portas fechando, queda de bandejas no chão, fogos de artifício e escapamento de motos, foram relatados como desconfortáveis por 12 pacientes (66,67%), enquanto 8 (44,44%) demonstraram incômodo com a música. Foi observado que a equipe assistencial entra nos quartos dos pacientes cantando e utilizando instrumentos musicais como forma de distração e animação, no entanto isso resultou em agitação negativa para algumas dessas crianças.
Identificou-se na pesquisa que 53,1% dos pacientes têm preferências luminosas, 35% (6 pacientes) preferem o ambiente mais iluminado e 65% (11), menos iluminado.
Análise de associação
Figura 5. Porcentagem de incidência de gatilhos relacionados por diagnóstico.
Os resultados apontam que 100% dos pacientes com TDAH (n=3) e TND (n=4) apresentaram desconforto tátil. Nenhum paciente com TDAH observou os estímulos auditivos como fonte de agitação. Para os pacientes com TEA, a maior prevalência de desconforto foi relatada em relação ao sentido auditivo (64,71%) e à necessidade de rotina e previsibilidade (58,82%). O diagnóstico que mais apresentou desconforto com a temperatura foi o de pacientes com TND. Dentro da classificação de temperatura, os pacientes com TEA foram os únicos que apresentaram desconforto com frio (n=4), enquanto os outros diagnósticos relataram quadros de agitação com calor.
O olfato apresentou-se como o sentido que menos gerou desconforto em todos os pacientes da amostra, sendo mais mencionado por pacientes com TND (50%). Para os pacientes com Síndrome de Down, o que mais gerou apreensão foi o estímulo visual (75%), enquanto o olfativo foi menos mencionado (12,50%).
Observa-se que, para o local de coleta, houve associação significativa com os gatilhos tato e texturas. Pacientes submetidos à coleta na internação apresentaram 5,600 vezes mais chances de terem o tato como gatilho e 6,111 vezes mais chances de terem texturas como gatilho, comparados aos pacientes do ambulatório. Infere-se por esse fenômeno que a criança está mais exposta a diferentes materiais e comidas quando está no leito de internação. Assume-se que, quando a criança está em casa, os tutores oferecem alimentos que desencadeiam menos reações de desconforto, enquanto, na internação, é estimulada uma refeição balanceada, podendo conter alimentos novos e com texturas que desagradem o paciente.
No que concerne aos desencadeadores identificados, a análise da Figura 6 indica uma diferença notável na relação entre a temperatura e a idade dos pacientes. Foi observado que os indivíduos que identificaram a temperatura como gatilho apresentavam idade significativamente inferior à daqueles que não o fizeram. Foram relatados casos de náuseas e prurido cutâneo associados às elevadas temperaturas do ambiente. Esses relatos evidenciam o impacto direto das experiências sensoriais na saúde física dos pacientes, corroborando a hipótese de que tais estímulos desencadeiam uma resposta fisiológica substancial.
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Figura 6. Boxplot da idade (anos) em relação à temperatura como gatilho em pacientes diagnosticados com condições clínicas relacionadas ao Transtorno de Processamento Sensorial.
Durante as entrevistas, 27 (84,4%) acompanhantes relataram que os pacientes tinham preferências por ambientes abertos ou compartimentados. Destes, 18 (66,7%) pontuaram que ambientes menores seriam mais cômodos, enquanto 9 (33,3%) relataram preferência por ambientes amplos. Os 5 (15,6%) restantes não souberam definir.
Discussão
Considerando que as respostas foram obtidas por meio das entrevistas com pais e tutores das crianças, estas estão relacionadas à percepção que os responsáveis atribuíram aos fenômenos abordados, e não um relato do próprio paciente. A aplicação de questionário com tutores é usual (Neumann, 2017 P.150), tendo em vista que parte dos usuários é não verbal e nem sempre possui maturidade para descrever suas próprias sensações.
Os relatos dos participantes confirmam a hipótese de que a experiência sensorial tem impacto fisiológico significativo. Nesse sentido, foram descritas manifestações físicas como estresse, irritabilidade e inquietação em situações de sobrecarga sensorial.
Os achados relacionados aos gatilhos auditivos para desconforto condizem com o estudo de Neumann (2017), demonstrando que o impacto da alta intensidade de ruído é capaz de desestruturar o psicológico humano, principalmente com sons inesperados e altas frequências, em especial em pessoas que processam os sentidos de maneira diferente, como o grupo de estudo. As respostas emocionais relatadas nas entrevistas incluem casos de mãos na orelha, grito, choro, agitação, nervosismo e autoagressão. Alguns mencionam sentimentos de medo, ansiedade e até mesmo dor física, com relatos de crianças tapando com as mãos os ouvidos ou os olhos.
Na mesma linha, quanto aos estímulos luminosos, considerando que mais da metade dos pacientes apresentou preferência quanto ao nível de iluminação, infere-se que a melhor maneira de proporcionar conforto ao usuário é oferecer autonomia para escolha, visto que essa possibilidade de manipulação do espaço pode alterar o humor, o comportamento e a percepção do paciente neurodivergente (Nair, 2022, p.11).
Resultados de estudos anteriores (Finnigan, 2024, p.12; Nair, 2022, p.09) apontam que a maioria das crianças com TEA prefere as luzes de LED, visto que as brilhantes e que piscam tendem a causar comportamentos de agitação e estresse extremo devido à sensibilidade luminosa. Importante ressaltar que a intensidade da luz e a temperatura de cor devem ser trabalhadas juntas, pois ambos os fatores desempenham papel essencial na percepção do entorno (Nair, 2022, p.09).
A organização espacial também se mostrou um aspecto importante para a sensação de familiaridade e predição do espaço, visto que a desordem leva à sobrecarga de estímulos e ao reflexo de fuga (Steinicke, 2022). Isso se deve à importância da rotina, da ordem, da regularidade e da previsibilidade para esse perfil de paciente (Nair, 2021). Os achados da pesquisa ressaltam a importância de adaptar os espaços voltados para o público para acomodar uma variedade de necessidades sensoriais, especialmente nas áreas de espera do ambulatório.
Relatos sobre os gatilhos táteis e visuais levantaram a reflexão sobre proxêmica e elementos dinâmicos, especialmente no que se refere ao espaço pessoal e à sobrecarga sensorial em contextos sociais. Observa-se uma associação entre a preferência por espaços amplos ou compartimentados e o desconforto decorrente do contato físico inesperado. Ambientes compartimentados proporcionam uma zona de segurança controlada em espaços limitados, enquanto áreas amplas oferecem distanciamento físico em relação a outros indivíduos. Essa questão foi levantada com base nos relatos, considerando que a ausência de terminologia específica em parte dos participantes pode ter influenciado a completa expressão de suas experiências.
Os participantes compartilharam que o desconforto visual surge quando há muito movimento combinado com cores vibrantes, ruídos ou multidões, resultando em um desafio sensorial complexo. Com isso, identifica-se a necessidade de estabelecer zonas distintas adaptadas para atender às necessidades sensoriais e espaciais únicas, que permitam autonomia e levem em consideração as preferências individuais.
Considerando que o ordenamento visual tem impacto positivo na percepção do usuário, pontua-se que imagens estáticas proporcionam mais conforto. Por outro lado, altos contrastes visuais (cores, luz e sombra) são identificados como negativos.
Por fim, destaca-se a importância de oferecer uma diversidade de estímulos sensoriais em diferentes locais, assim como alcançar um equilíbrio estratégico entre áreas abertas e fechadas. Nesse contexto, a possibilidade de vista externa para jardins ou áreas verdes é tida como ponto positivo.
Conclusão e considerações finais
Considerando a pluralidade dos usuários, em especial no que tange à hipossensibilidade e à hipersensibilidadade, entende-se que a melhor maneira de proporcionar conforto aos usuários é a possibilidade de controlar o ambiente, para que não haja necessidade de brusca adaptação do exterior para o interior dos edifícios. Nesse contexto, os elementos passíveis de controle dentro do contexto de internação hospitalar são a iluminação natural e artificial, a temperatura, a velocidade de deslocamento de vento, os ruídos e os estímulos visuais provenientes de televisores, acionamento de exaustores etc.
Espaços homogêneos e sem excesso de informação passam a sensação de segurança e conforto visual. Assim, para os elementos fixos, como cores, formas, texturas e brilho, recomenda-se a adesão aos padrões de médio contraste, como uso direcionado de contrastes, prevalência de cores neutras e dessaturadas, , proporcionando ambientes com clareza de informações visuais. Em locais em que não é possível controlar as fontes de estímulos, tais como o hall central do ambulatório, é importante oferecer ambientes de fuga, bem como espaços para retirada, de acordo com a gravidade do autismo. Para o controle da iluminação natural proveniente das janelas, a instalação de persianas adequadas para ambientes hospitalares é uma solução simples e de baixo custo de manutenção. No mesmo sentido, é possível separar os circuitos de iluminação artificial por meio de interruptores para cada tipo de luminária (vigília, exame, geral etc.).
A utilização de sistemas de suporte visual e espacialidades para distinguir funções pode ser uma estratégia de disposição espacial, considerando que a previsibilidade é aliada do conforto. Podemos destacar nesse sentido propostas de caminhos visuais para comunicar sequências de atividades, bem como a compartimentalização em funções claramente definidas.
Com relação ao conforto sonoro, destacamos que todo som pode ser positivo e negativo. A presença de sons da natureza, como o ruído da água corrente, em ambientes estratégicos, como esperas e recepções, pode causar sensação de conforto, estimulando a independência dos usuários. O uso de sons a certa distância traz orientabilidade e noção de profundidade do espaço, evitando incongruência entre o espaço visual e o auditivo. No entanto, ruídos de máquinas (ruído contínuo vibracional, frequência baixa e alta intensidade), ruídos abruptos ou inesperados e de sofrimento, (frequência e intensidade altas) como choro de bebê, gritos de crianças, buzinas, explosão de bexiga, já causam desconforto.
Observar as normativas de segurança para ruído de equipamentos técnicos, bem como o laudo de ruído, facilita a gestão da localização de fontes de ruído no desenvolvimento do layout, além de ser uma estratégia para que o som de um determinado ambiente não interfira de maneira negativa na percepção do outro, causando irritações gratuitas. Nesse sentido, indica-se o isolamento sonoro de ambientes e máquinas ruidosas, que, em conjunto com o projeto de condicionamento sonoro, traz espaços mais silenciosos de transição entre os atendimentos e consultórios.
Indica-se cuidado com a especificação de materiais reflexivos, como piso de porcelanato, que favoreçam a reverberação do ambiente, dificultando a inteligibilidade da fala e a comunicação. Nessa linha, é importante destacar o equilíbrio entre absorção e reflexão sonoras, com o uso de pisos vinílicos, forro mineral e materiais fonoabsorventes que permitam a leitura do ambiente de forma rápida, sem estímulos sonoros em excesso, evitando a hipersensibilidade sonora, que funciona como barreira para a percepção funcional do usuário. A Tabela 2 traz o resumo das diretrizes e as recomendações de projeto de acordo com o gatilho sensorial e os estímulos sensoriais com impacto negativo esperado.
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Tabela 2. Resumo das diretrizes e recomendações para ambientes hospitalares diante dos gatilhos sensoriais e os estímulos sensoriais com impacto negativo encontrado.
Assim, a proposição de quartos individuais, localizados no fim do corredor, pode proporcionar mais conforto aos pacientes ao reduzir o impacto dos ruídos e a circulação de pessoas, além de oferecer uma gama diversificada de experiências ao usuário. Analogamente, podem ser planejadas salas de espera especiais com tratamento acústico, iluminação suave, temperatura controlada e um ambiente compartimentado. A proximidade de um consultório adequado à sala de espera e a implementação de um prontuário afetivo, contendo informações sobre as preferências e limitações do paciente, também podem ser consideradas.
Um dos principais desafios deste estudo é a falta de trabalhos adicionais e normas adequadas sobre o assunto, o que pode dificultar a precisão da pesquisa. No entanto, muito pode ser aprendido monitorando a satisfação de pacientes e acompanhantes com estudos de avaliação pós-ocupação, como frequentemente é feito em pesquisa e prática arquitetônica.
Apesar dessas limitações, o estudo proporcionou compreensão acerca do tema e do subgrupo analisado, destacando a necessidade de pesquisas mais amplas e intervenções de projeto inovadoras para apoiar e atender às necessidades sensoriais atípicas em hospitais pediátricos.
Neste trabalho, foram levantados os desencadeadores de desconforto sensorial em crianças neurodivergentes dentro do contexto do hospital pesquisado. Os achados confirmam a questão de pesquisa de que o ambiente construído tem grande relevância no conforto e na resposta emocional desses pacientes. A abordagem qualitativa e o questionário semiestruturado proporcionaram uma visão geral dos problemas a serem sanados para futuras adequações espaciais nos ambientes utilizados por esses pacientes. Os resultados da pesquisa foram analisados e interpretados antes de serem contextualizados nos espaços onde foram coletados, resultando em recomendações para a equipe de arquitetura e outras partes responsáveis para impulsionar a criação de ambientes interiores salutogênicos e mais confortáveis para crianças com TPS. As diretrizes propostas não representam uma solução única para projetos arquitetônicos adequados para a população neurodivergente em geral, considerando a necessidade de projetos personalizados para distintos grupos. No entanto, oferecem uma visão das necessidades do subgrupo específico dos pacientes pediátricos do hospital em estudo, observando suas condições clínicas.
Referências
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